sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Ponta Delgada

Voo SATA Porto – Ponta Delgada

Aproximação ao aeroporto. Vista aérea de Ponta Delgada.

Antero de Quental – óleo sobre a tela de Columbano Bordalo Pinheiro, 1889, 
Museu do Chiado, Lisboa.

Antero de Quental foi um poeta, filósofo e agitador político, considerado, por muitos, o mais influente intelectual da “Geração de 70”. Ponta Delgada foi seu berço, em 1842; seu refúgio, em vários períodos; e seu túmulo, em 1891. A Direção Regional de Cultura dos Açores editou um pequeno guia que apresenta diversos elementos biográficos, contextualiza lugares anterianos e propõe uma reconstituição da última viagem de Antero de Quental pelas ruas da cidade, que conduz o visitante por um percurso provável, desde a saída da casa de José Bensaúde, um importante membro da comunidade judaica de S. Miguel, até ao lugar do seu trágico final, o Campo de S. Francisco, num banco junto do Convento da Esperança. O local do suicídio está assinalado com uma âncora no muro exterior da cerca. Este edifício, escolhido para ser o palco final de um homem doente, deprimido e angustiado, é um local de peregrinação para milhares de açorianos, residentes ou na diáspora, que aqui chegam, todos os finais de tarde, para prestarem culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres.

Jardim Antero de Quental.

Banco onde Antero de Quental se suicidou, em 11 de setembro de 1891.

 Antes do derradeiro regresso a Ponta Delgada, Antero de Quental viveu uma década em Vila do Conde, considerado, por si, um dos períodos mais felizes da sua existência: “Aqui as praias são amplas e belas, e por elas me passeio ou estendo ao sol com a voluptuosidade que só conhecem os poetas e os lagartos adoradores da luz”. A casa foi recentemente recuperada pelo município e pode ser vista aqui: http://www.dezeen.com/2010/03/22/house-antero-de-quental-by-manuel-maia-gomes/

Neste retorno a Ponta Delgada, fiquei alojado no local onde Antero de Quental se hospedou, quando regressou pela última vez, o Hotel Brown, atualmente, restaurado e convertido em Pousada da Juventude. Tinha a tarde e a noite livres, antes do voo madrugador para S. Jorge, no dia seguinte. Foi daqui que iniciei a revisitação da cidade, cruzando, no meu percurso pedonal, alguns dos referidos lugares anterianos com o rasto de uma pequena, mas dinâmica comunidade judaica micaelense, de origem marroquina, estabelecida no arquipélago nos anos vinte do século XIX. 

Pousada da Juventude, antigo Hotel Brown, onde Antero de Quental se hospedou
 no seu derradeiro regresso a Ponta Delgada, em 12 de junho de 1891.

As famílias judaicas sefarditas que chegaram aos Açores fugiam da instabilidade do Norte de África e aproveitaram a liberdade religiosa, que o recém liberalismo triunfante oferecia, para se fixarem em diversas ilhas, principalmente na Terceira e em S. Miguel. Encontraram nos Açores potencial para o comércio, através da importação de tecidos, venda a retalho e exportação de laranjas. A comunidade judaica de Ponta Delgada foi a mais importante dos Açores. Estima-se que o seu número tenha chegado aos cento e cinquenta indivíduos. Na década de trinta de oitocentos, surgiram os dois principais testemunhos da sua vivência religiosa que chegaram até aos nossos dias: em 1834, o Cemitério Hebraico de Santa Clara e, em 1836, a Sinagoga Sahar Hassamain.

Campo da Igualdade / Cemitério Hebraico de Santa Clara. 
Um local de culto judeu com um nome de uma santa cristã.

Interior da Sinagoga Sahar Hassamain. Fonte: http://portuguese-american-journal.com/almeida-mello-the-plight-to-save-the-jewish-legacy-of-the-azores-interview/ Nesta entrevista ao Portuguese-American Journal, José de Almeida e Mello, historiador e bibliotecário, Coordenador da Comissão para a Restauração da Sinagoga, descreve todo o processo e contextualiza a presença judaica na região.

Foi fundada por vários membros da comunidade, entre os quais, Abraão Bensaúde, pioneiro da emigração judaica e pai de José Bensaúde, o mais dinâmico empresário do século XIX açoriano e amigo de Antero de Quental. De referir que, das cinco sinagogas existentes em Ponta Delgada, esta foi a única em edifício próprio, localizada na Rua do Brum, nº16, próximo de dois dos mais conhecidos monumentos do centro histórico, a Igreja Matriz de S. Sebastião e as Portas da Cidade. Hoje, é a única sinagoga do arquipélago que resistiu ao tempo e a mais antiga existente em Portugal, após a expulsão dos judeus, no reinado de D. Manuel, em 1496. Quanto ao cemitério, está entregue ao cuidado dos descendentes dos Bensaúde, apesar de já não praticarem o judaísmo.

Igreja Matriz de S. Sebastião, primeira metade do século XVI. 
Porta central em pedra lioz, em estilo manuelino; 
portas laterais em basalto da ilha, em estilo barroco.

Portas da Cidade, século XVIII. Praça Gonçalo Velho Cabral.

A presença judaica nos Açores terminou cerca de meio século após o seu início. No último quartel do século XIX, as famílias judaicas começaram a abandonar o território, por motivos económicos. O declínio do ciclo da laranja e um regime aduaneiro menos favorável levaram os judeus a partirem de novo, desta vez para o Brasil e os EUA. A exceção foi a família Bensaúde que chegou até aos nossos dias como líder da atividade económica dos Açores (www.grupobensaude.com e www.bensaude.pt). Além da navegação e do comércio interilhas, da importação/exportação de bens, os Bensaúde foram responsáveis, entre outros negócios, pela criação de algumas das empresas mais emblemáticas do arquipélago, como, a Fábrica de Tabaco Micaelense, a Empresa de Turismo Terra Nostra ou a Sociedade Açoriana de Transportes Aéreos (SATA).

Fábrica de Tabaco Micaelense, fundada em 1866, por José Bensaúde.

Calçada portuguesa na Avenida Infante D. Henrique.

Com a partida da maioria da comunidade e sem residentes fiéis em número suficiente para assegurar o culto regular, a Sinagoga Sahar Hassamain foi abandonada na década de cinquenta do século passado e entrou em degradação. Enquanto se aguardam a conclusão das obras e a abertura do futuro Museu Hebraico de Ponta Delgada, previsto para 2015, o espólio do templo está a salvo na Biblioteca Municipal Ernesto do Canto. Inclui objetos usados nas cerimónias, livros, documentos em hebraico e mobiliário, com destaque para uma cadeira em madeira usada para realizar circuncisões, oferecida por Sarah Bensliman Bensaúde, avó materna do ex-Presidente da República, Jorge Sampaio.


Estas deambulações históricas e pedestres pela cidade tiveram o seu epílogo no miradouro da Ermida da Mãe de Deus. O dia estava bonito e convidava a um pequeno repouso, com uma vista de horizontes largos sobre a cidade e o Atlântico.

Ponta Delgada a partir do miradouro da Ermida da Mãe de Deus.

Referências bibliográficas e na web:

COSTA, Susana Goulart (2008), Açores: Nove Ilhas, Uma História, Direção Regional de Cultura.

DIAS, Fátima Sequeira (2012), Roteiro das Comunidades - Herança Judaica nos Açores, Direção Regional das Comunidades.

STEINHARDT, Inácio (2013), “O Último Judeu dos Açores” in WebMosaica Revista do Instituto Cultural Marc Chagall. Artigo alojado em: http://www.seer.ufrgs.br/webmosaica/article/viewFile/43104/27206

Roteiros Culturais dos Açores - Antero de Quental (2011), Direção Regional de Cultura.

http://portuguese-american-journal.com/almeida-mello-the-plight-to-save-the-jewish-legacy-of-the-azores-interview/ Versão portuguesa: http://zivabdavid.blogspot.pt/2013/11/heranca-judaica-nos-acores.html