domingo, 2 de abril de 2017

Quatro notas

Quatro notas sobre uma viagem de 48 horas a Ponta Delgada

1.Sinais. Nos últimos anos, tenho vindo regularmente aos Açores e assistido à transformação de S. Miguel. De ano para ano, à medida que cresce o número de turistas que visitam a ilha, tem aumentado a oferta hoteleira, a restauração tem sido renovada e os programas diversificados. Estas mudanças são mais sentidas em Ponta Delgada, uma vez que é a principal porta de entrada do arquipélago. A liberalização do mercado aéreo em 2015 apenas acelerou a tendência de crescimento. Não estão em causa os benefícios do turismo no desenvolvimento económico, nomeadamente através da criação de receitas e de emprego, em particular, numa região tão marcada pela emigração. Contudo, há sinais de algum desconforto, que vão para além da inevitável especulação imobiliária e da moda dos hostels na baixa. Que sentido faz um parque de roulotes de comidas num local tão emblemático como o Miradouro Vista de Rei sobre as Sete Cidades? E os tuk-tuks pelas ruas de Ponta Delgada? Num momento em que se prepara a abertura de um casino e se discute a construção de um aquário na enseada na cidade, talvez fosse útil reflectir na experiência islandesa, por apresentar características similares com o arquipélago: um pequeno território insular de 300 mil habitantes, com enorme beleza natural, que, neste momento, questiona a sustentabilidade turística e a preservação da autenticidade, para que não seja vítima do seu próprio sucesso.

2.Taberna do Raposo. No final da rua do Peru, próximo de um centro catequético, entalado entre dois Gentlemen Clubs, fica a Taberna do Raposo, um lugar que não tem a mínima concessão com a modernidade. Não há turistas, nem mulheres, nem televisão, nem máquina de café. Tudo o que se encontra dentro deste templo vinícola micaelense são homens de poucas palavras ao balcão e néctares etílicos para estômagos anti-corrosão. Na penumbra, deslumbram-se, a um canto, fotografias a preto e branco de um Benfica-Sporting, jogado em 1976, aquando da inauguração do Estádio do Santa Clara. Depois de passar umas fitas de plástico, entra-se num pequeno espaço interior, ainda mais austero, onde repousam as pipas. Por fim, do lado esquerdo, a casa de banho com uma poética identificação pendurada numa folha de papel: “Vale dos Aflitos”. Encalhada no passado e rodeada de futuro por todos os lados, não sei se a Taberna do Raposo ainda terá longa vida pela frente. Mas, de uma coisa eu tenho a certeza: quando fechar as portas, morrerá de pé!

3.Pelos lugares da memória. O liceu Antero de Quental abriu em 21 de Fevereiro de 1852. Trata-se do mais antigo estabelecimento secundário da ilha. É composto por dois edifícios: o antigo Palácio do Barão da Fonte Bela e a secção, que acolhe os ginásios e as salas de aula. No meio, a separar os dois espaços, há um belo jardim que evoca o patrono da escola e placas que testemunham a passagem de antigos alunos. Ao fundo, encostado a um muro, existe um velho dragoeiro que já não aguenta sozinho o peso do tempo, com necessidade de andaimes para manter-se apresentável. Guiado por uma micaelense de gema, que fez aí parte dos seus estudos liceais, percorri este seu lugar de memória, onde se construíram amizades para a vida e se recordaram professores que ajudaram a crescer. Enquanto caminhava, revisitei mentalmente o meu liceu, o Eça de Queirós. Ponta Delgada e Póvoa de Varzim. Memórias das circunstâncias que nos marcaram, da nossa história de vida, naquele tempo e naquele lugar.


4. Sala de Embarque. Quatro personagens encontram-se, por razões diversas, numa difusa sala de embarque: um velho em perda mental, uma rapariga sonhadora, um jovem impaciente e uma mulher de meia-idade caída no desemprego. O cenário é simples: no palco, dois bancos de madeira condensam o impasse e as tensões que se vão estabelecer entre o quarteto; no alto, nuvens suspensas, que tanto alimentam sonhos como anunciam tempestades. Nos Açores, os humores atmosféricos acentuam essa ambiguidade. Nunca se sabe o dia de amanhã e, talvez por isso, o final seja em aberto. Ninguém parte de mala vazia, sem as sombras do passado e as interrogações do futuro. Não estamos num momento definido, mas é impossível dissociarmos do nosso tempo mais recente, os anos da Troika, em que nos indicavam uma porta de saída do país, aconselhavam “a abandonar a nossa zona de conforto”, que não “fossemos piegas”. Não sou competente para discutir questões técnicas, representações, textos e ritmos da dramaturgia. Nem se fosse o caso isso teria qualquer interesse para aqui. O que eu quero salientar são a coragem e o empenho de uma equipa alargada não profissional em levar à cena uma reflexão sobre a partida, primeiro, no final do ano passado, na Galeria Arco 8, e, no dia 25 de Março de 2017, no salão nobre da ilha, o Teatro Micaelense. Tal como nas três sessões anteriores, a sala esgotou. Valeu a pena a viagem, a deles e a minha. Ao contrário do que nos acusam, nem sempre gastamos todo o tempo e o dinheiro “em copos e mulheres”.