Quatro notas sobre uma viagem de 48
horas a Ponta Delgada
1.Sinais.
Nos últimos anos, tenho vindo regularmente aos Açores e assistido à
transformação de S. Miguel. De ano para ano, à medida que cresce o número de
turistas que visitam a ilha, tem aumentado a oferta hoteleira, a restauração tem
sido renovada e os programas diversificados. Estas mudanças são mais sentidas em Ponta Delgada, uma vez que é a principal porta de entrada do
arquipélago. A liberalização do mercado aéreo em 2015 apenas acelerou a
tendência de crescimento. Não estão em causa os benefícios do turismo no
desenvolvimento económico, nomeadamente através da criação de receitas e de
emprego, em particular, numa região tão marcada pela emigração. Contudo, há
sinais de algum desconforto, que vão para além da inevitável especulação
imobiliária e da moda dos hostels na
baixa. Que sentido faz um parque de roulotes de comidas num local tão emblemático
como o Miradouro Vista de Rei sobre as Sete Cidades? E os tuk-tuks pelas ruas de Ponta Delgada? Num momento em que se prepara
a abertura de um casino e se discute a construção de um aquário na enseada na
cidade, talvez fosse útil reflectir na experiência islandesa, por apresentar
características similares com o arquipélago: um pequeno território insular de
300 mil habitantes, com enorme beleza natural, que, neste momento, questiona a sustentabilidade
turística e a preservação da autenticidade, para que não seja vítima do seu
próprio sucesso.
2.Taberna
do Raposo. No final da rua do Peru, próximo de um centro
catequético, entalado entre dois Gentlemen
Clubs, fica a Taberna do Raposo, um lugar que não tem a mínima concessão
com a modernidade. Não há turistas, nem mulheres, nem televisão, nem máquina de
café. Tudo o que se encontra dentro deste templo vinícola micaelense são homens
de poucas palavras ao balcão e néctares etílicos para estômagos anti-corrosão.
Na penumbra, deslumbram-se, a um canto, fotografias a preto e branco de
um Benfica-Sporting, jogado em 1976, aquando da inauguração do Estádio do Santa
Clara. Depois de passar umas fitas de plástico, entra-se num pequeno espaço
interior, ainda mais austero, onde repousam as pipas. Por fim, do lado
esquerdo, a casa de banho com uma poética identificação pendurada numa folha de
papel: “Vale dos Aflitos”. Encalhada no passado e rodeada de futuro por todos
os lados, não sei se a Taberna do Raposo ainda terá longa vida pela frente.
Mas, de uma coisa eu tenho a certeza: quando fechar as portas, morrerá de pé!
3.Pelos
lugares da memória. O liceu Antero de Quental abriu em 21
de Fevereiro de 1852. Trata-se do mais antigo estabelecimento secundário da
ilha. É composto por dois edifícios: o antigo Palácio do Barão da Fonte Bela e
a secção, que acolhe os ginásios e as salas de aula. No meio, a separar
os dois espaços, há um belo jardim que evoca o patrono da escola e placas que testemunham
a passagem de antigos alunos. Ao fundo, encostado a um muro, existe um velho
dragoeiro que já não aguenta sozinho o peso do tempo, com necessidade de andaimes
para manter-se apresentável. Guiado por uma micaelense de gema, que fez aí
parte dos seus estudos liceais, percorri este seu lugar de memória, onde se
construíram amizades para a vida e se recordaram professores que ajudaram a
crescer. Enquanto caminhava, revisitei mentalmente o meu liceu, o Eça de
Queirós. Ponta Delgada e Póvoa de Varzim. Memórias das circunstâncias que nos
marcaram, da nossa história de vida, naquele tempo e naquele
lugar.
4.
Sala de Embarque. Quatro personagens encontram-se, por razões
diversas, numa difusa sala de embarque: um velho em perda mental, uma rapariga sonhadora,
um jovem impaciente e uma mulher de meia-idade caída no desemprego. O cenário é
simples: no palco, dois bancos de madeira condensam o impasse e as tensões que
se vão estabelecer entre o quarteto; no alto, nuvens suspensas, que tanto
alimentam sonhos como anunciam tempestades. Nos Açores, os humores atmosféricos
acentuam essa ambiguidade. Nunca se sabe o dia de amanhã e, talvez por isso, o
final seja em aberto. Ninguém parte de mala vazia, sem as sombras do passado e
as interrogações do futuro. Não estamos num momento definido, mas é impossível
dissociarmos do nosso tempo mais recente, os anos da Troika, em que nos indicavam uma porta de saída do país,
aconselhavam “a abandonar a nossa zona de conforto”, que não “fossemos piegas”.
Não sou competente para discutir questões técnicas, representações, textos e
ritmos da dramaturgia. Nem se fosse o caso isso teria qualquer interesse para
aqui. O que eu quero salientar são a coragem e o empenho de uma equipa alargada
não profissional em levar à cena uma reflexão sobre a partida, primeiro, no
final do ano passado, na Galeria Arco 8, e, no dia 25 de Março de 2017, no
salão nobre da ilha, o Teatro Micaelense. Tal como nas três sessões anteriores,
a sala esgotou. Valeu a pena a viagem, a deles e a minha. Ao contrário do que
nos acusam, nem sempre gastamos todo o tempo e o dinheiro “em copos e mulheres”.