1.Viajar para os Açores em tempos de
covid-19. Num ano normal comprava-se o bilhete de avião e o
assunto estava arrumado. Em 2020, a pandemia impôs procedimentos obrigatórios
como se fôssemos viajar para um território excêntrico da Atlântida. Para evitar
a perda de tempo no aeroporto (a preencher papéis e inquéritos) e o isolamento
profilático (caso optasse por fazer o teste covid-19 à chegada), decidi percorrer
o circuito normativo ainda no continente. Depois de ter marcado o voo, agendei
o teste covid-19 num laboratório acreditado pelo Governo Regional, fiz a
colheita 48 horas antes da partida, respondi a um questionário da Autoridade de
Saúde Regional, preenchi uma declaração de entrada no arquipélago e uma outra
para deslocação inter-ilhas, marquei um novo teste covid-19 ao 6.º dia no Centro de Saúde de Vila do Porto e imprimi a papelada para apresentá-la à
chegada. Não está em causa o controlo das entradas da região nem tenho
competência para comentar a obrigatoriedade de um segundo teste. Porém, as
autoridades locais podiam concentrar a informação pessoal num único ficheiro
digital e escusavam de repetir perguntas em diferentes documentos em papel. Ultrapassadas
as tendas sanitárias e a burocracia à saída dos aeroportos, somos devolvidos à
tranquilidade de sempre. É isso que conta. Para minha felicidade, Santa Maria
esteve disponível quase só para mim.
Saída
do aeroporto, 1.º dia, 07H00.
Como
o meu 6.º dia no arquipélago aconteceu num domingo e o Centro de Saúde estava fechado,
fiz o teste covid-19 numa tenda no exterior do aeroporto.
2.Uma breve diagonal. É
a ilha mais meridional do arquipélago. Dizem que é a menos açoriana, sem
fenómenos de vulcanismo activo, vacas leiteiras a pincelar a paisagem e mormaço
a encharcar a roupa. Em substituição, há praias de areia branca, gado para
produção de carne e promessas de dias de Verão sem chuva e muita humidade. No
Pico Alto, podemos dividi-la em duas: para Este, montanhas e verde exuberante;
para Oeste, planícies e amarelo ferrugem. Foi a primeira a ser colonizada, mas
é das últimas a ser descoberta pelos forasteiros. Vila do Porto, sede do único
concelho, tem uma rua principal com três nomes e umas ruelas secundárias na
rectaguarda. Dada a pequenez, toda a gente se conhece e se encontra rua acima
ou rua abaixo. O casario branco remete para a origem geográfica dos primeiros
povoadores. Do Alentejo e Algarve vieram a cal, as chaminés e as barras de
cores que diferenciam as cinco freguesias. Há algum movimento no estio e muita
quietude nas restantes épocas do ano. Animação breve e isolamento prolongado,
sentimentos que fazem, afinal, Santa Maria uma ilha tão açoriana como as outras.
Praia
dos Lobos, Anjos, costa Norte. Local de desembarque dos primeiros colonos nos
Açores, em 1439, liderados pelo 1.º Capitão-Donatário Gonçalo Velho Cabral.
Jazidas
de fósseis marinhos (7 a 5 ma), Pedreira do Campo, arredores de Vila do Porto,
costa Sul. Antes de passar por aqui, recomenda-se uma visita ao Centro
Ambiental Dalberto Pombo, para entender o contexto natural da ilha (geográfico,
geológico e ambiental).
3. Os anos dourados. Quem
aterra em Santa Maria não pode deixar de reparar na grandiosidade do aeroporto
e nos edifícios que se encontram no exterior. Em 1944, os americanos iniciaram
a construção da pista e de diversas infraestruturas de apoio: redes viárias,
saneamento básico, central elétrica, bairro habitacional e equipamentos sociais
(hotel, piscinas, cineteatro, hospital…). Adormecida no tempo, de repente, Santa
Maria tinha acordado para o mundo. Entre 1950 e 1970, o aeroporto desempenhou
um papel central nas ligações entre a Europa e a América, quando ainda não
havia autonomia para atravessar o Atlântico. Todas as grandes companhias faziam
escala na ilha. Por lá passavam regularmente estrelas da política, do cinema,
do desporto, da música. No hotel, havia uma orquestra permanente e
organizavam-se festas de acesso restrito. Foram os anos dourados de Santa Maria.
Com o desenvolvimento tecnológico da aviação e a afirmação estratégica das
Lajes, o aeroporto perdeu importância e mais de metade da população da ilha
emigrou. Hoje, é um espaço sobredimensionado para as necessidades actuais,
reduzido às ligações diárias a Ponta Delgada e às semanais a Lisboa. Contudo,
nem tudo se perdeu. A gestão do controlo de uma vasta parte do espaço aéreo do
Atlântico Norte é realizada a partir da Estação de Comunicações Oceânica de
Santa Maria. Quanto ao futuro, se os planos do porto espacial de lançamento de
satélites forem concretizados pode ser que o aeroporto e a ilha venham a ter
uma nova vida.
Para
os interessados na aviação: https://www.youtube.com/watch?v=ast6gKn0tJc
(documentário “Santa Maria Connetion”, Eberhard Schedl, 56:18) e https://roteirolpaz.wixsite.com/welcome
(roteiro cultural e histórico do aeroporto de Santa Maria, Associação LPaz).
Quanto
aos planos do porto espacial: “Desta ilha vê-se o céu”, Virgílio Azevedo, Revista do Expresso,
08/12/2018. Informações e polémicas poderão ser acompanhadas aqui: https://www.ptspace.pt/pt-pt/ e https://santaespacomaria.com/
Amália
Rodrigues no aeroporto de Santa Maria, 1950. Fonte: www.ana.pt
Cineteatro
em remodelação, bairro do aeroporto. Neste local actuou Frank Sinatra, em
14.06.1945. Foi a sua estreia na Europa, com 29 anos, no âmbito de uma
digressão internacional, para os militares norte-americanos, durante a 2.ª
Guerra Mundial.
Fonte: “Quando Sinatra cantou nos Açores”, Pedro Barros Costa,
p.70-76, Revista LPaz, vol. 3, Dezembro 2017. O artigo completo pode ser
consultado aqui: https://issuu.com/associacaolpaz/docs/revista_lpaz_3_issuu
Frank Sinatra só voltaria a Portugal no
final da carreira, aos 76 anos, para um único espectáculo no Estádio das Antas,
em 07.06.1992.
Casa
do Director do Aeroporto de Santa Maria, projectada na década de 50 pelo
arquitecto Keil do Amaral. Em 2019, foi anunciado que seria a futura sede da
Agência Espacial Portuguesa – Portugal Space. Observada do portão, parece que a
obra ainda não arrancou.
Quonset huts,
barracas cilíndricas em metal. Ainda existem algumas espalhadas ao longo da
estrada do aeroporto, acompanhadas de bocas-de-incêndio feitas em St. Louis, Missouri.
A maior parte destas “casas americanas” está em mau estado de conservação e
aguarda restauro.
4. Mergulhos secos. O
mergulho é uma das principais atracções de Santa Maria. Nas águas costeiras habitam
tubarões, cachalotes, tartarugas, golfinhos, jamantas, entre outra fauna
marítima. É conhecida e amplamente divulgada a enorme riqueza dos mares dos
Açores. Em outras viagens pelo arquipélago, nunca fui tentado pelo oceano. Sempre
gostei de estar rodeado pelo mar, mas sempre gostei mais de estar em terra. Na
preparação da viagem, depois de ter lido algumas reportagens, decidi equacionar
uma expedição às Formigas. Era uma oportunidade única para conhecer uma das
mais desconhecidas parcelas do território nacional e observar in loco a vida animal. No caso das
jamantas, seria, provavelmente, o contacto mais próximo que eu teria com um ser
“extraterrestre”! Depois do entusiasmo, começaram a pairar dúvidas no ar…. Sem
qualquer conhecimento e experiência de mergulho, fazia sentido uma viagem
destas para mim? E apenas recorrendo ao snorkeling, seria possível observar as jamantas? E
caso as questões anteriores tivessem uma resposta negativa, valeria a pena fazer
uma excursão em alto mar para ver oito ilhéus e um farol? Assim que entrei em
contacto com uma empresa especializada, rapidamente a ideia caiu por terra,
pois, a reduzida procura e a falta de tempo para obter as devidas autorizações
impossibilitavam a organização da viagem. Plano B. Ir à Biblioteca Municipal de
Vila do Porto e mergulhar na realidade virtual, através de um filme de 10
minutos realizado na Reserva do Ambrósio. Infelizmente, devido ao protocolo de
segurança sanitária, o acesso aos meios audiovisuais estava interdito. Maldito
covid-19!
Duas
soluções de recurso: https://www.youtube.com/watch?v=nwyPUvckCh0
(“Santa Maria”, Rafa Herrero Massieu, 4:11) e https://vimeo.com/424836507
(“The Mini Mantas of Santa Maria”, Danny Copeland, 5:37)
Os
temas marítimos dominam a calçada portuguesa em Vila do Porto.
Jamantas
em Santa Maria. Fonte: www.natgeo.pt
5. Três paisagens. Um
dos meus maiores prazeres quando venho aos Açores é percorrer a pé um trilho
antigo ou uma estrada regional. Enquanto o faço, há a natureza para ser
contemplada e dificuldades no caminho para serem ultrapassadas. No final, todo o
esforço será recompensado, independentemente dos imprevisíveis humores
atmosféricos. A Praia Formosa é uma das raras de areia quase branca, com a água
a 24.ºC. Foi aqui que comecei e terminei o meu périplo pedestre mariense. Habituado
às temperaturas polares poveiras e desgastado por um ano atípico, nunca me
souberam tão bem uns prolongados banhos de mar. Ainda a Sul, mas mais para Leste,
situa-se outro lugar fascinante, a Maia, com os vinhedos nas escarpas, o
fotogénico farol na Ponta do Castelo e as histórias do tempo da baleação. Mais
um dia de deslumbramento e mergulhos. Por fim, na costa Este, a Baía de S.
Lourenço, um dos mais extraordinários cenários humanizados e vinhateiros de
Portugal, que rivaliza com a Criação Velha, no Pico, e os socalcos, no Douro
Superior. Do Miradouro do Espigão temos o quadro completo. Um anfiteatro sobre
o mar, onde existem uma pequena praia e umas piscinas naturais. Pela encosta
acima, currais de vinhas, pequenos quadrados de pedra, que parecem bordados de
basalto. À medida que a altitude aumenta e a encosta se afasta do oceano, os
currais elevam-se quase na vertical, como se estivessem embutidos na parede. Quando
por lá passei, fui recebido com chuva miudinha e um céu de chumbo, mas o que é
belo nunca perde o encantamento. Formosa, Maia e S. Lourenço, três paisagens
que valem uma viagem ou um regresso a Santa Maria.
Praia Formosa vista do Miradouro da Macela.
Vinhedos na encosta, Maia.
Baía da S. Lourenço visto do Miradouro do Espigão.