quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Notas de uma viagem à Graciosa

1. Arquipélago completo. A Graciosa é a segunda ilha de menor dimensão e a menos visitada dos Açores. O Corvo desperta mais curiosidade pela sua geografia: a mais pequena e distante. As Flores têm recebido cada vez mais viajantes, atraídos por uma paisagem edénica e por um tempo vagaroso. Santa Maria beneficia da proximidade com S. Miguel e tem mais potencial estratégico, tecnológico e turístico que a torna mais visitável. Dentro do grupo das ilhas periféricas, a Graciosa acaba por ser aquela que fica para o fim. Por vezes, nem isso. Em 1901, aquando da visita da Família Real aos Açores, o desembarque não se efetuou, por indisposição súbita da Rainha D. Amélia. Em 1924, a ilha continuou a ser desconhecida para Raúl Brandão, que a retratou apenas do convés do navio. Apesar de pertencer ao grupo central, de central nada tem. Está à margem do movimentado triângulo S. Jorge-Pico-Faial e na dependência do avião da Terceira. Mesmo no Verão, os transportes marítimos são incertos e não permitem planos apertados de tempo, sob o risco de se ficar a ver navios ou em desespero por eles. Ao contrário de outras ilhas, na Graciosa não se está de passagem nem de lá se regressa ao fim da tarde. Para conhecê-la, é preciso ir e ficar. As fotos e as palavras que se seguem retratam os dias por lá vividos numa semana de Agosto, na ilha que completou o meu arquipélago.

"Chama-se Graciosa por ser bem assombrada à vista",
escreveu Frei Agostinho de Monte Alverne (1629-1726).

Aeroporto de Santa Cruz da Graciosa.

2. A dupla insularidade. A insularidade faz parte da condição humana açoriana. A imensidão do mar, os horizontes finitos e a clausura são os seus estereótipos. De diferente gradação, mas válidos para todo o arquipélago. Em épocas de maior agitação política, os Açores acolheram vários degredados, que pagaram o desalinhamento com o isolamento. Dois exemplos, em campos de pensamento opostos, que deixaram obra publicada sobre a ilha: Félix José da Costa, apoiante do Setembrismo, autor de "Memória Estatística e Histórica da Ilha Graciosa (Angra, 1845); e Hipólito Raposo, monárquico e conservador, que escreveu "Descobrindo Ilhas Descobertas" (Lisboa, 1942). Num tempo em que o avião e as comunicações digitais atenuaram as distâncias viver em algumas ilhas continua a ser um ato de grande coragem. É o caso da Graciosa, que sofre de dupla insularidade, pela sua geografia periférica e pela dependência de uma ilha maior. Para nascer, ter consultas de especialidade e ver Mundo é preciso partir para a Terceira e depois seguir o destino. Num pedaço de terra de 12 km de comprimento por 8 km de largura, quatro mil habitantes, distribuídos por uma vila e quatro freguesias, resistem ao drama silencioso do envelhecimento, da emigração e da fuga de jovens.

António de Brum Ferreira (1941-2013), Professor Catedrático de Geografia, escreveu, em 1968, no início da sua carreira, esta monografia sobre a ilha, que permanece, apesar da passagem do tempo, o estudo de referência sobre o território e as suas gentes.


3. Imagens icónicas. Durante séculos, o burro anão da Graciosa foi usado como meio de transporte e apoio no trabalho. De pelo cinzento e com pouco mais de um metro de altura, foi introduzido na ilha, provavelmente, por piratas do Norte de África. Ao longo da segunda metade do século XX, a espécie entrou em declínio, com a introdução dos transportes modernos e as alterações na produção agrícola. A recuperação deveu-se a Franco Ceraolo, um cenógrafo italiano que, depois de ter trabalhado com grandes nomes do cinema, como Fellini, Bertolucci ou Scorcese, escolheu uma ilha discreta no Atlântico para gozar a reforma. Em 2007, comprou uma quinta no lugar da Esperança Velha e, em 2013, fundou, com um grupo de amigos, a “Associação de Criadores e Amigos do Burro Anão da Graciosa”. Dos cerca de noventa que existem, um quarto são dele. Outra importação que esteve igualmente ameaçada pela modernidade foi o moinho branco de cúpula vermelha. Originários do Norte da Europa, remetem para um tempo em que a Graciosa era grande produtora de cereais. Dos vinte e oito existentes, apenas um continua em funcionamento. A grande maioria está desativada ou foi reconvertida em turismo de habitação, como é o caso do mais bonito de todos, o Moinho da Pedra, na Vila da Praia de S. Mateus.

Trio asinino na Esperança Velha. Em breve, poderemos vê-los no cinema. O realizador Gonçalo Tocha, autor do documentário sobre o Corvo "É na Terra não é na Lua (2011), prepara um novo filme (em fase de montagem), que terá como protagonistas Franco Cearolo e os burros da Graciosa.

Moinho de Pedra, Vila da Praia de S. Mateus.

4. Excentricidades. O que têm de comum Assuíno, Brivaldo, Celedónio, Irzelindo, Ovina, Ursolino ou Wolfgang Mozart de Eiró? Estas relíquias fazem parte de uma longa lista de nomes próprios em desuso que foram recolhidos por Vítor Rui Dores, em “A Graciosa Ilha” (Santa Cruz, 2009), e que retratam um singular fenómeno de mimetismo cultural, de influência brasileira, ocorrido no final do século XIX e início do século XX. Sempre que falava com alguém nas minhas andanças pela ilha, perguntava-lhe o nome, à espera de encontrar uma pérola onomástica perdida. Tive sorte. No segundo dia, conheci um Parménio! Mais fáceis de localizar são os elementos da arquitetura da água, nascida da necessidade de sobrevivência. Ao contrário do que acontece nas outras ilhas do arquipélago, o revelo menos acidentado na Graciosa determinou menos pluviosidade e solos mais secos. A penúria era tal que o Almirante George Cumberland, inglês que liderou uma incursão nos Açores, no contexto domínio filipino, afirmou, em 1589, que na Graciosa havia mais álcool do que água! No século XIX, este desequilíbrio líquido aguçou o engenho artístico da população. Para responder ao problema da seca, foi criada uma rede de reservatórios e tanques a descoberto, enquanto a riqueza resultante da produção de vinho levou à aquisição de uma inusitada quantidade de pianos, uma moda trazida pela viajada elite local. Mais uma vez, um olhar externo registou que na Graciosa havia mais pianos do que máquinas de costura, numa época em que este bem era de primeira necessidade. Hoje, a maior parte desses instrumentos são peças de decoração. Sentado num banco da Praça Fontes Pereira de Melo, no centro de Santa Cruz, observo as águas verde-garrafa que refletem as copas das araucárias e a elegância das casas solarengas e penso nos nomes graciosenses como fonte de inspiração para uma grávida do continente.

Remédio local para combater a melancolia e o isolamento: Pedras Brancas,
uma produção que se encontra à venda na Adega Cooperativa de Santa Cruz.

Piano à entrada do Museu da Graciosa, Santa Cruz.

5. Nasceu o Homem-Alho. Estávamos há meia hora na esplanada do Jale à espera do lírio e dos alfonsins grelhados. Em Agosto, com o regresso dos emigrantes e a vinda de alguns forasteiros, a restauração local, habituada à tranquilidade da maior parte do ano, entra em colapso. A partir das sete e meia, quando se consegue uma mesa, a demora é certa. Entre conversa e cerveja, reparámos no fabuloso pão de alho que estava a ser servido ao nosso lado. Pousadas numa tábua de madeira, seis fatias generosas de pão caseiro, barradas com manteiga e pimentão, cobertas com alho laminado. Não hesitámos! Para enganar a fome e dar companhia ao álcool no estômago, pedimos a mesma entrada e regressamos à nossa cavaqueira. Entretanto, o tempo passou, até que, após mais de uma hora de espera, lá chegou o nosso peixe, enquanto o pão de alho se tinha perdido entre múltiplos pedidos. Este só apareceu, como tinha previsto uma das comensais, a meio do jantar… No final, saímos do restaurante com a sensação de que teríamos de cumprir rigorosamente as indicações da Direção Geral de Saúde relativas ao distanciamento social. A cada minuto que passava, o poder do alho da Graciosa revelava-se em todo o seu esplendor! Parecíamos o corpo diplomático da Transilvânia em passeio noturno pela capital da ilha. Não havia vampiro que se chegasse perto nem vírus que se atravessasse no corpo. Depois de meio quilo de alho ingerido, não será necessário uma terceira dose da vacina covid-19!

Os mais fanáticos deste hortícola têm um evento ao seu dispor: 
o Festival do Alho da Graciosa.


6. Vislumbres do Inferno e do Paraíso. Júlio Verne imaginou uma viagem ao centro da Terra a partir do vulcão islandês Snaefellsjokull, mas não é necessário pronunciar um nome tão complicado nem ir tão longe para cumprir esse desejo. Basta descer os 183 degraus da torre de acesso à Furna do Enxofre, para chegar à maior cúpula vulcânica da Europa. Nas profundezas, o borbulhar constante das lamas e o cheiro intenso a enxofre alertam-nos para as poderosas forças telúricas. Existe ainda um perigo sorrateiro: a libertação permanente e impercetível de dióxido de carbono que se acumula na zona mais baixa da caverna e que pode atingir níveis de concentração letais. Apanhei um desses dias com valores elevados, o que limitou a visita no interior. De regresso à superfície, segui para as Termas do Carapacho, onde fluem águas entre os 35.ºC e os 40.ºC, vindas de um aquífero situado por baixo da furna. Na internet, há diversos serviços que alimentam a imaginação: banhos de hidromassagem, duche Vichy, fisioterapia e massagens. No mundo real, não há nada. Encontrei o recinto fechado, o que fez com que a chuva que caía no momento parecesse mais pesada do que era. Depois do almoço, o Sol regressou em força como se fosse prenúncio de uma retoma. Num futuro próximo, quando o vulcão acalmar e a pandemia passar, voltará a ser possível, num local remoto do Atlântico, descer ao Inferno e ascender ao Paraíso. Mas essa viagem já não será para mim.

Interior da Furna do Enxofre: caverna lávica, com 180m de comprimento, 172m de largura e 50m de altura na parte central. Fonte: https://www.azoresgeopark.com

Termas do Carapacho e Ilhéus de Baixo.