1. Arquipélago completo.
A Graciosa é a segunda ilha de menor dimensão e a menos visitada dos Açores. O
Corvo desperta mais curiosidade pela sua geografia: a mais pequena e distante. As Flores têm recebido cada vez mais
viajantes, atraídos por uma paisagem edénica e por um tempo vagaroso. Santa
Maria beneficia da proximidade com S. Miguel e tem mais potencial estratégico,
tecnológico e turístico que a torna mais visitável. Dentro do grupo das ilhas
periféricas, a Graciosa acaba por ser aquela que fica para o fim. Por vezes,
nem isso. Em 1901, aquando da visita da Família Real aos Açores, o desembarque não se efetuou, por indisposição súbita da Rainha D. Amélia. Em 1924, a ilha continuou a ser desconhecida para Raúl Brandão, que a retratou apenas do convés do navio. Apesar
de pertencer ao grupo central, de central nada tem. Está à margem do movimentado
triângulo S. Jorge-Pico-Faial e na dependência do avião da Terceira. Mesmo no
Verão, os transportes marítimos são incertos e não permitem planos apertados de
tempo, sob o risco de se ficar a ver navios ou em desespero por eles. Ao
contrário de outras ilhas, na Graciosa não se está de passagem nem de lá se
regressa ao fim da tarde. Para conhecê-la, é preciso ir e ficar. As fotos e as
palavras que se seguem retratam os dias por lá vividos numa semana de Agosto, na
ilha que completou o meu arquipélago.
2. A dupla insularidade.
A insularidade faz parte da condição humana açoriana. A imensidão do mar, os
horizontes finitos e a clausura são os seus estereótipos. De diferente gradação,
mas válidos para todo o arquipélago. Em épocas de maior agitação política, os
Açores acolheram vários degredados, que pagaram o desalinhamento com o
isolamento. Dois exemplos, em campos de pensamento opostos, que deixaram obra
publicada sobre a ilha: Félix José da Costa, apoiante do Setembrismo, autor de "Memória Estatística e Histórica da Ilha Graciosa (Angra, 1845); e Hipólito Raposo, monárquico e conservador, que escreveu "Descobrindo Ilhas Descobertas" (Lisboa, 1942). Num tempo em que o avião
e as comunicações digitais atenuaram as distâncias viver em algumas ilhas
continua a ser um ato de grande coragem. É o caso da Graciosa, que sofre de dupla
insularidade, pela sua geografia periférica e pela dependência de uma ilha maior. Para nascer,
ter consultas de especialidade e ver Mundo é preciso partir para a Terceira e
depois seguir o destino. Num pedaço de terra de 12 km de comprimento por 8 km
de largura, quatro mil habitantes, distribuídos por uma vila e quatro
freguesias, resistem ao drama silencioso do envelhecimento, da emigração e da
fuga de jovens.
António
de Brum Ferreira (1941-2013), Professor Catedrático de Geografia, escreveu, em
1968, no início da sua carreira, esta monografia sobre a ilha, que permanece, apesar
da passagem do tempo, o estudo de referência sobre o território e as suas
gentes.
3. Imagens icónicas. Durante
séculos, o burro anão da Graciosa foi usado como meio de transporte e apoio no
trabalho. De pelo cinzento e com pouco mais de um metro de altura, foi
introduzido na ilha, provavelmente, por piratas do Norte de África. Ao longo da
segunda metade do século XX, a espécie entrou em declínio, com a introdução dos
transportes modernos e as alterações na produção agrícola. A recuperação
deveu-se a Franco Ceraolo, um cenógrafo italiano que, depois de ter trabalhado
com grandes nomes do cinema, como Fellini, Bertolucci ou Scorcese, escolheu uma
ilha discreta no Atlântico para gozar a reforma. Em 2007, comprou uma quinta no
lugar da Esperança Velha e, em 2013, fundou, com um grupo de amigos, a
“Associação de Criadores e Amigos do Burro Anão da Graciosa”. Dos cerca de noventa
que existem, um quarto são dele. Outra importação que esteve igualmente
ameaçada pela modernidade foi o moinho branco de cúpula vermelha. Originários
do Norte da Europa, remetem para um tempo em que a Graciosa era grande
produtora de cereais. Dos vinte e oito existentes, apenas um continua em
funcionamento. A grande maioria está desativada ou foi reconvertida em turismo
de habitação, como é o caso do mais bonito de todos, o Moinho da Pedra, na Vila
da Praia de S. Mateus.
4. Excentricidades. O
que têm de comum Assuíno, Brivaldo, Celedónio, Irzelindo, Ovina, Ursolino ou
Wolfgang Mozart de Eiró? Estas relíquias fazem parte de uma longa lista de
nomes próprios em desuso que foram recolhidos por Vítor Rui Dores, em “A
Graciosa Ilha” (Santa Cruz, 2009), e que retratam um singular fenómeno de
mimetismo cultural, de influência brasileira, ocorrido no final do século XIX e
início do século XX. Sempre que falava com alguém nas minhas andanças pela ilha,
perguntava-lhe o nome, à espera de encontrar uma pérola onomástica perdida. Tive
sorte. No segundo dia, conheci um Parménio! Mais fáceis de localizar são os elementos
da arquitetura da água, nascida da necessidade de sobrevivência. Ao contrário
do que acontece nas outras ilhas do arquipélago, o revelo menos acidentado na
Graciosa determinou menos pluviosidade e solos mais secos. A penúria era tal
que o Almirante George Cumberland, inglês que liderou uma incursão nos Açores,
no contexto domínio filipino, afirmou, em 1589, que na Graciosa havia mais
álcool do que água! No século XIX, este desequilíbrio líquido aguçou o engenho
artístico da população. Para responder ao problema da seca, foi criada uma rede
de reservatórios e tanques a descoberto, enquanto a riqueza resultante da
produção de vinho levou à aquisição de uma inusitada quantidade de pianos, uma
moda trazida pela viajada elite local. Mais uma vez, um olhar externo registou
que na Graciosa havia mais pianos do que máquinas de costura, numa época em que
este bem era de primeira necessidade. Hoje, a maior parte desses instrumentos
são peças de decoração. Sentado num banco da Praça Fontes Pereira de Melo, no
centro de Santa Cruz, observo as águas verde-garrafa que refletem as copas das
araucárias e a elegância das casas solarengas e penso nos nomes graciosenses
como fonte de inspiração para uma grávida do continente.
5. Nasceu o Homem-Alho.
Estávamos há meia hora na esplanada do Jale à espera do lírio e dos alfonsins
grelhados. Em Agosto, com o regresso dos emigrantes e a vinda de alguns
forasteiros, a restauração local, habituada à tranquilidade da maior parte do
ano, entra em colapso. A partir das sete e meia, quando se consegue uma mesa, a
demora é certa. Entre conversa e cerveja, reparámos no fabuloso pão de alho que
estava a ser servido ao nosso lado. Pousadas numa tábua de madeira, seis fatias
generosas de pão caseiro, barradas com manteiga e pimentão, cobertas com alho
laminado. Não hesitámos! Para enganar a fome e dar companhia ao álcool no
estômago, pedimos a mesma entrada e regressamos à nossa cavaqueira. Entretanto,
o tempo passou, até que, após mais de uma hora de espera, lá chegou o nosso
peixe, enquanto o pão de alho se tinha perdido entre múltiplos pedidos. Este só
apareceu, como tinha previsto uma das comensais, a meio do jantar… No final,
saímos do restaurante com a sensação de que teríamos de cumprir rigorosamente as
indicações da Direção Geral de Saúde relativas ao distanciamento social. A cada
minuto que passava, o poder do alho da Graciosa revelava-se em todo o seu
esplendor! Parecíamos o corpo diplomático da Transilvânia em passeio noturno
pela capital da ilha. Não havia vampiro que se chegasse perto nem vírus que se
atravessasse no corpo. Depois de meio quilo de alho ingerido, não será
necessário uma terceira dose da vacina covid-19!
6. Vislumbres do Inferno e do Paraíso. Júlio
Verne imaginou uma viagem ao centro da Terra a partir do vulcão islandês
Snaefellsjokull, mas não é necessário pronunciar um nome tão complicado nem ir
tão longe para cumprir esse desejo. Basta descer os 183 degraus da torre de
acesso à Furna do Enxofre, para chegar à maior cúpula vulcânica da Europa. Nas
profundezas, o borbulhar constante das lamas e o cheiro intenso a enxofre
alertam-nos para as poderosas forças telúricas. Existe ainda um perigo sorrateiro:
a libertação permanente e impercetível de dióxido de carbono que se acumula na
zona mais baixa da caverna e que pode atingir níveis de concentração letais. Apanhei
um desses dias com valores elevados, o que limitou a visita no interior. De
regresso à superfície, segui para as Termas do Carapacho, onde fluem águas
entre os 35.ºC e os 40.ºC, vindas de um aquífero situado por baixo da furna. Na internet, há diversos serviços que alimentam a imaginação: banhos de hidromassagem, duche
Vichy, fisioterapia e massagens. No mundo real, não há nada. Encontrei o
recinto fechado, o que fez com que a chuva que caía no momento parecesse mais
pesada do que era. Depois do almoço, o Sol regressou em força como se fosse
prenúncio de uma retoma. Num futuro próximo, quando o vulcão acalmar e a
pandemia passar, voltará a ser possível, num local remoto do Atlântico, descer
ao Inferno e ascender ao Paraíso. Mas essa viagem já não será para mim.