1. Chegada.
Faltava-me a última etapa da longa maratona aérea iniciada no
Porto: o voo interno Tóquio–Osaca que me colocaria no ponto
inicial do meu itinerário. Assim que se iniciou o embarque, entrei
no avião da Air Nippon Airways e sentei-me no lugar. Por ser
repetitivo, não costumo prestar muita atenção às normas de
segurança que são anunciadas pelas hospedeiras antes da descolagem.
Faço o indispensável (ponho o cinto e coloco o telemóvel em modo
voo) e desligo-me na fase dos coletes e das máscaras de
oxigénio. Desta vez, porém, estive atento. À minha frente, no
monitor individual, surgiu um pequeno filme em que as instruções
eram apresentadas de forma divertida por actores do teatro Kabuki e
por senhoras de quimono que associamos às estampas japonesas.
Sentia-me num mundo flutuante e em movimento lento devido ao peso dos
sonos trocados e ao cansaço das horas de voo, mas já estava a ser
capturado por esse fascínio que o Japão exerce em muitos que o
visitam ou sonham visitá-lo: uma extraordinária capacidade de se
reinventar, de inovar sem perder a identidade. A bordo de um avião
que cheirava a novo, a tradição mantinha-se viva ao serviço da
modernidade.
Voo Munique-Tóquio. Aproximação ao aeroporto de Haneda.
Voo Tóquio-Osaca: instruções de segurança I.
Voo Tóquio-Osaca: instruções de segurança II.
2. Perdido no espaço e no tempo.
Após dois séculos de isolamento, em 1853, os EUA forçaram a
abertura do Japão
ao comércio internacional. Este acontecimento desencadeou o processo
de modernização (período denominado “Restauração Meiji”),
que conduziu o país, em poucas décadas, de Estado feudal a potência
política, económica e militar. No século XX, uma nova demonstração
de vitalidade: violentamente destruído pelo terramoto de Kanto e
pela guerra, chegou ao final do século no topo da economia mundial e
na vanguarda tecnológica. Apesar das mudanças ou derrocadas que a
História Contemporânea lhe trouxe, manteve-se um equilíbrio entre
as tradições do passado e as transformações induzidas pela
ciência e pelas técnicas. Chegados ao mundo global em que vivemos,
em que tudo parece cada vez mais igual, o Japão
marca a diferença ao conciliar o
progresso com uma cultura original em vários domínios do
quotidiano: na cozinha, nos rituais do chá, no teatro, nas artes
visuais, na arquitectura. Estou a
passear descontraído numa rua quando, de repente, deparo-me com um
robô vestido com uma fatiota tradicional; ou saio de um templo de
madeira sem um único prego para admirar as linhas de um edifício
que levaram ao prémio Pritzker. O
encontro entre o passado e o presente cruza-se amiúde, mas,
deixa-me, às vezes, um pouco perdido. Tenho consciência que não
pertenço a esta cultura milenar, por me faltarem muitas chaves de
entendimento.
De cima para baixo, da esquerda para a direita: Teatro Kabuki / Robôtica;
Ukiyo-e (Estampa) / vocaloid Hatsume Miku; e Maneki Neko (Gato da Sorte) / Hello Kitty.
Cartaz "Welcome to Tokyo, old meets new", Sede do Governo Metropolitano de Tóquio.
O alienígena sou eu. Sentimento de quem aterra noutro mundo.
Bairro de Akihabara, Tóquio.
3. Silêncio na multidão.
Quem circula pelo Japão não deixará de notar o elevado grau de
organização social, a extrema limpeza dos espaços públicos e a
eficiência dos transportes. Tome-se
como exemplo uma viagem de Shinkansen (comboio-bala) Quioto-Tóquio,
seguido de um trajecto de metro da Estação Central até Kayabacho,
no bairro de Chuo, onde fiquei alojado. Estou há vários dias no
Japão e tenho o processo assimilado.
Chego à Estação de
Quioto quinze minutos antes da partida, passo pelo controlo dos
portadores do Japan Rail Pass, dirijo-me para a linha de onde partirá
o Shinkansen Hiraki, posiciono-me na fila destinada à carruagem 15 e
aguardo. Sei que ele há-de parar de acordo com a indicação que se
encontra no chão. Dois minutos antes da partida, tal
como previsto, o comboio dá entrada na plataforma, sob supervisão
de três funcionários dos caminhos de ferro vestidos a rigor. As
pessoas entram ordeiramente e sentam-se nos seus lugares. Na
plataforma, os funcionários comunicam à distância, através de um
ritual sinalético, certificando-se que o embarque foi concluído em
segurança. O comboio sai de Quioto às 15h32 e chega a Tóquio às
18H10. Precisão cirúrgica. Nem um minuto a mais nem um minuto a
menos. Duas horas e trinta e oito minutos para percorrer 513.6 km,
com meia dúzia de paragens pelo meio. Só de comparar com a
eficiência da CP fico com vontade de apanhar uma bebedeira de saké!
Na capital, tenho um novo desafio pela frente: mergulhar na cidade
subterrânea para chegar ao meu destino. No início, fico assustado
ao olhar para a complexa rede de metro: uma encruzilhada de linhas
públicas e privadas que mais parece um labirinto visual. Há que
manter a calma perante o desnorte. Tenho de escolher a melhor rota e
seguir as informações dos painéis luminosos. De resto, já conheço
as regras básicas para não ser abalroado no formigueiro humano:
manter um ritmo ligeiro, caminhar pela esquerda e encostar-me nas
passadeiras rolantes. Antes
de continuar, vou à casa de banho. A apresentação, como sempre, é
irrepreensível.
No final de um dia de trabalho, as carruagens vão cheias de gente
que dormita, rostos inexpressivos ou olhares amarrados à tecnologia.
Ninguém fala. Estão todos com auriculares e não há barulhos que
incomodem os passageiros. A vida em sociedade atinge aqui um patamar
de qualidade que é inatingível na nossa terra. Além da
organização, da limpeza e da eficiência, também se estima o
silêncio.
Como organizar uma fila num espaço reduzido.
Estação ShinOsaka (de onde partem os Shinkansen), Osaca.
Rede do metro de Tóquio.
Além de eficiente (a água para lavar as mãos irá para o autoclismo), no lado direito de quem se senta, há uns botões estranhos para o "namban-jin" ("bárbaros do sul", termo utilizado para qualificar os portugueses): uns servem para enviar uns esguichos de água para os orifícios corporais, enquanto outros abafam ruídos inconvenientes através de música ambiente. Sanita Panasonic, uma maravilha tecnológica.
Nos transportes, há muita gente amarrada aos telemóveis, mas ninguém incomoda o vizinho.
Comboio suburbano Nara-Quioto.
4. Lost in Translation.
O civismo e a cortesia que se observam na sociedade japonesa, e que
se estendem aos estrangeiros que deambulam pelo país, decorrem da
ideia de que o indivíduo não é mais importante do que o grupo. Num
país isolado pelo mar e fragmentado em mais de seis mil ilhas,
sujeito a várias calamidades naturais e com uma reduzida área
habitável, os japoneses interiorizaram, ao longo dos séculos, o
respeito pela vida em comunidade, por não encontrarem fora dela
grandes hipóteses de sobrevivência. Um simpático empresário de
Hokkaido (ilha ao Norte do arquipélago), que me acompanhou numa
caminhada pelo Parque Ueno, em Tóquio, confirmou-me esta
informação-síntese, resultante de leituras que precederam a viagem
e, na mesma frase, assinalou
outra particularidade que é constatada no dia a dia:
“O povo japonês é muito gentil, mas lamentavelmente fala mal
inglês”. Os jovens contornam o problema recorrendo a umas
aplicações móveis que traduzem no imediato uma abordagem numa
língua bárbara. No entanto, quando a tecnologia está ausente,
muitas vezes, a boa vontade do transeunte não é suficiente para
responder ao pedido do visitante, por incapacidade mútua de
compreensão. Uma pequena história para ilustrar esta observação.
Em três dias, fui calcado duas vezes no mesmo pé (acidentes que
acontecem a quem anda de sandálias no meio de multidões…)
Precisava de um anti-inflamatório para atacar o inchaço e as dores.
Prevendo as dificuldades de comunicação que iria encontrar, pedi ao
recepcionista do hostel que, por escrito, explicasse o acidente e
fizesse o meu pedido. Na manhã seguinte, lá fui eu, com a obra de
arte na mão, confiante que a coisa iria ser resolvida facilmente.
Chegado à farmácia, entreguei o papel à menina que me atendeu e
esperei que ela me trouxesse o remédio. Contudo, tal não aconteceu.
Depois da leitura, fez uns comentários sobre o texto e colocou um
par de questões no ar. O efeito prático que pretendia com a missiva
morreu ali. Em vez de acção, deu-me um estudo hermenêutico em
japonês. Pedi socorro e apareceu uma colega sorridente licenciada
pela Tarzan British School. Depois de conferenciarem entre si, o que
se seguiu foi um diálogo absurdo, em que cada uma queria
convencer-me a tomar/aplicar um medicamento diferente. Fiquei uns
instantes anestesiado a assistir ao interessantíssimo debate entre o
partido do comprimido e o partido do emplastro. Estando num impasse a
poucos dias do regresso a casa, preferi abster-me e continuar com o
calvário, o que limitou as minhas andanças por Tóquio. Não deixa
de ser estranho e surpreendente: uma sociedade de perfil futurista
com tantas dificuldades em expressar-se em inglês.
O filme é, entre outras coisas, uma excelente incursão na vida diurna e nocturna de Tóquio.
"Lost in Translation", realizado por Sofia Coppola, EUA, 2003, com Bill Murray e Scarlett Johansson.
Pé esquerdo do "namban-jin" num estado miserável.
Interior da cápsula 107, Oak Hostel Cabin, bairro de Chuo, Tóquio.
Missiva japonesa a explicar o que aconteceu ao meu pé e a pedir um anti-inflamatório. Sendo a caligrafia uma arte (denominada "Shodo"), este documento foi classificado "Tesouro Pessoal".
5. Portugal e o Japão, encontros e
desencontros. Além
da digressão pela tradição e modernidade, também parti para o
Japão em busca da nossa História. Fui à procura do que ficou dessa
presença longínqua e que era compatível de ser visitado com o
trajeto delineado. Na preparação da viagem, foram excluídas as
ilhas Kyushu (onde se localiza Nagasaki, fundada pelos portugueses em
1570) e Tanegashima (onde se deu o primeiro encontro em 1543), devido
à falta de tempo e à distância em relação ao eixo Kansai–Kanto
(distritos centrais do país). Depois, caiu Tokushima, assim que
soube que a Casa-Museu Wenceslau de Moraes estava encerrada. Restaram
o Museu da Cultura Namban de Osaca; o Templo Shunko-in, em Quioto; e
o Museu Nacional de Tóquio. Todos se revelaram uma desilusão, por
diferentes razões que passo a explicar. O primeiro alberga uma
colecção de biombos que pertence a um acervo mais amplo de arte de
influência portuguesa no Japão. Sabia, de antemão, que não iria
ser fácil visitá-lo, porque este só se encontra aberto ao público
em Maio e Novembro. Pensei que, se conseguisse entrar em contacto
directo com a instituição, referisse a minha origem geográfica e
explicasse os motivos do meu interesse, talvez tivesse sorte. Pedi a
uma menina do Centro de Informações da Estação de Osaca que
fizesse o pedido em meu nome, mas, apesar do seu esforço ao
telefone, não tive sucesso. Desfez-se em mil e uma desculpas, como
se fosse responsável pela intransigência alheia. Em Quioto, houve
uma nova recusa com contornos distintos. O Templo Budista Zen
Shunko-in guarda um sino de bronze que pertenceu à Igreja de Nª Sª
da Assunção (destruída com as perseguições aos cristãos) e o
único documento trocado entre um representante da Coroa, o Vice-Rei
da Índia D. Duarte de Menezes, e um dirigente japonês, Toyotomi
Hideyoshi. Como não encontrei ninguém nos jardins exteriores,
avancei até à porta de entrada, retirei o calçado e entrei no
átrio com uns cautelosos “hellos”... De repente, irrompeu a
estrela da companhia, o Reverendo Takafumi Kawakami, stressado e maldisposto, a questionar
o
que estava ali a fazer. Apresentei-me, expus a razão da minha súbita
aparição e perguntei-lhe
se era possível ver o sino e a carta. Recusou o meu pedido de forma
brusca, afirmando que o local estava encerrado para visitas e que
apenas havia marcações para sessões de meditação. Voltei a
insistir e voltei a levar um grosseiro “não”. Caiu o mito da
delicadeza dos monges budistas. É incompreensível como um indivíduo
que dá palestras pelo mundo, ensina filosofia zen e vende meditação
e chá a estrangeiros fica perturbado perante um visitante que apenas
desejava contemplar uns vestígios dos seus antepassados. O facto de
ter aparecido sem avisar não justifica que as boas maneiras tenham
ficado atrofiadas no seu cérebro. Foi a única excepção à
proverbial cortesia japonesa. Dias mais tarde, estive no Museu
Nacional de Tóquio, onde esperava ver finalmente arte Namban. Vi
vários tesouros nacionais, de diferentes épocas e feitios, percorri
todas as salas do edifício mas, artefactos da presença portuguesa,
nada. Inquiri no balcão de informação. O museu exibe apenas cerca
de 3 mil dos 117 mil objectos que possui. Explicaram-me que muitas
peças estão em deficientes condições de conservação e somente
algumas são exibidas em exposições temporárias no período
natalício. Paciência. Portugal acabou por se encontrar comigo,
quase sempre, de modo fugidio e inesperado: um mosquete no Templo
Ryogen-ji, um galão e um pastel de nata na Pastelaria Castella do
Paulo, em Quioto; uma t-shirt do Ronaldo no metro, uns CDs da Mísia
e da Amália na Tower Records, em Tóquio. Pouco para o que tinha
planeado. A meio da terceira semana de Agosto, observava um dos pares
de biombos no Museu Nacional de Arte Antiga quando apareceu um jovem
asiático que me pediu para tirar-lhe uma fotografia em frente ao Kurofune, o barco negro que fazia o trajecto anual entre Goa, Macau e
Nagasaki. Perguntei-lhe a origem. Disse-me que era de Nagasaki, que
aquele era o seu último dia em Portugal e que estava muito contente
por ali estar. Foram os infortúnios que me conduziram àquele lugar
e àquele encontro, diante uns exóticos narigudos que estavam a
desembarcar na terra dele. A minha viagem ao Japão terminou em
Lisboa com um acaso feliz.
Galão e pastel de nata, Pastelaria Castella do Paulo, Quioto.
Mísia e Amália, Tower Records, Tóquio.
Biombo Namban pintado por Kano Naizen (1603-1610?), com o "Kurofune" (barco negro)
em primeiro plano. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
6. Agradecimento. Estou
grato a vários historiadores, escritores e diplomatas que, através
dos seus livros e artigos, me ajudaram a compreender o Japão e a
combater a minha ignorância: Maria Helena Mendes Pinto, João Paulo
Oliveira e Costa, Pedro Dias, Alexandra Curvelo, Wenceslau de Moraes,
Armando Martins Janeira, Camilo Martins Oliveira, Porfírio Silva,
Jorge Kol de Carvalho, sem esquecer as introduções do Embaixador
José Freitas Ferraz. Muitos ensaios remetem para autores clássicos
dos séculos XVI e XVII, pioneiros desse encontro entre portugueses e
japoneses, nomeadamente, João Rodrigues e Luís Fróis. Todos
passaram pelo Japão em diferentes épocas e períodos de tempo.
Deles recebi informações, conhecimentos, vivências, olhares
atentos que foram muito úteis na preparação da viagem. Alguns
ainda me deram de suplemento momentos de fruição pura de leitura.
Quando Martins Janeira relata que adormecia os filhos no Japão com
canções de embalar transmontanas ou que se fez acompanhar pelo
mundo, até ao fim dos seus dias, por três pedras da Serra do
Reboredo, não posso deixar de confessar que a ternura deste pai e o
seu apego à terra natal não me deixaram indiferente. Se há
disparates nas minhas notas, eles são da minha exclusiva
responsabilidade. Talvez não tenham sido muito graves, por terem
sido escritas com poucas palavras.
"Relance da Alma Japonesa", um dos clássicos de Wenceslau de Moraes.
"O Impacto Português sobre a Civilização Japonesa" e "Figuras de Silêncio" são duas obras de Armando Martins Janeira que ajudam a compreender a herança portuguesa no Japão.
Armando Martins Janeira (Torre de Moncorvo, 1914 - Cascais,1988), Embaixador de Portugal no Japão, junto da estátua de Wenceslau de Moraes (1854, Lisboa -1929, Tokushima). Kobe, 1964.
Fonte: armandomartinsjaneira.net