sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Longyearbyen III

 Mas, afinal, onde estão os ursos?

No Taubanesentralen, o principal resquício do passado mineiro. A maioria das minas nas proximidades de Longyearbyen situa-se no alto de encostas íngremes e instáveis, onde era impossível construir estradas. Isso exigiu a necessidade de teleféricos para transportar o carvão para o cais de embarque (no verão) ou para um depósito de armazenamento (no inverno). Esta estrutura pesada e feia, apoiada em finas pernas, que parece um monstro de um filme de ficção científica, era a central que geria uma rede de cavaletes que se estendia em várias direções até à entrada das minas.


Taubanesentralen. Exposição “Layers of Time – Everyday Life in Svalbard”. Nordnorsk Kunstmuseum/ Galeria Nordover.


Ao longo do dia, camiões levam carvão da mina n.º 7 para a central elétrica.


A Arca da Humanidade. Nos arredores de Longyearbyen, localiza-se o Cofre Mundial de Sementes, construído pela Noruega e pela ONU, em 2008. Em caso de catástrofe, guerra ou alterações climáticas há um seguro alimentar da humanidade, com as culturas mais significativas da Terra, guardado numa estrutura subterrânea a –18.ºC. Num local remoto sem árvores nem terra arável preserva-se a biodiversidade terrestre e 12 mil anos de História Agrícola. Não se pode entrar, mas é possível fazer uma visita virtual aqui: https://seedvaultvirtualtour.com/ No inverno, os cabos azul turquesa de fibra ótica que iluminam o edifício fazem lembrar uma boate para ursos. Fonte da fotografia: Wikipédia.


O pouco que cresce é frágil e tem vida breve. Erva algodão do ártico, Eriophoum scheuchzeri.


Sinais. O Ártico está sob ameaça climática. Numa perspetiva pessimista, há cientistas que preveem, até ao final do século, verões sem gelo. Segundo o Instituto Polar Norueguês, desde 1975, a temperatura média em Longyearbyen aumentou bastante (foto). Uma vez que o solo tem vindo a derreter com maior profundidade, há receio que as estacas de madeira que sustentam as casas apodreçam e quebrem. Por isso, as novas construções estão assentes em pilares de cimento e aço. O aumento das avalanches obrigou a reorganizar o crescimento da cidade e levou à colocação de barreiras nas encostas, para evitar a repetição de acidentes. 


Casas sobre estacas, para evitar que o aquecimento derreta o solo e provoque instabilidade nas habitações.




Barreiras contra avalanches, casas coloridas e um bando de gansos com pressa.

Caminhadas nas proximidades. Subida penosa até ao telhado de Longyearbyen, o Platefjellet, a Montanha do Planalto (foto). Para evitar contratar um guia ou estar inserido num grupo, segui, à distância, um casal que estava armado (um parêntesis para relembrar que a vida no Ártico é dura e cara; por isso, há que encontrar soluções de sobrevivência e poupança). A rota começa nas traseiras do Taubanesentralen e serpenteia pela encosta acima. No topo, há uma vista panorâmica sobre a cidade. Pelo lado do Sukkertoppen, o Pico de Açúcar, o percurso também é exigente, para alargar os horizontes do Fiorde do Advento. Ambas completam-se e justificam o esforço físico.


Marco Varden.


Vista panorâmica sobre Longyearbyen.


O casal que foi seguido. Homem equipado com pistola de sinalização e espingarda.


Na encosta do Sukkertoppen, com vista sobre o Fiorde do Advento I - III.






Na Galeria Nordover. “Layers of Time – Everyday Life in Svalbard” exibe momentos de vida captados por Herta Grøndal Lampert e Leif Archie Grøndal, entre 1950 e 1990, desde o quotidiano em Longyearbyen até aos encontros entre as comunidades norueguesa e soviética durante a Guerra Fria. A exposição apresenta ainda fotografias tiradas pela filha Eva Grøndal (foto: esquerda, segunda pessoa) e música da neta/filha das fotógrafas Aggie Grøndal Peterson baseada em sons gravados do arquipélago, como espaços públicos, estruturas mineiras ou animais selvagens. Os temas são a mineração, os prazeres e as refotografias. Três gerações ligadas a Svalbard convidam os visitantes a observar as mudanças na sociedade e na natureza nas últimas décadas.


Algumas das mais de 13 mil fotografias do casal Grøndal.


Jovem mãe. Herta Grøndal Lampert.


Tempestade. Herta Grøndal Lampert.

Refotografias. Crianças: Herta Grøndal Lampert (preto e branco, 1955) e Eva Grøndal (cor, 2018).


Prazeres. Casamento, 1968. Herta Grøndal Lampert.


Prazeres. Homem em cima de um bloco de gelo, com o navio Aasenfjord, 1950. Leif Archie Grøndal.


Mineração. Mineiros consolidam o teto, anos 60. Herta Grøndal Lampert.


Mineração. Uma raposa do ártico sentada numa caixa, 1951. Leif Archie Grøndal.


A Galeria Nordover é dinâmica e diversificada. Tem um café, uma loja de artesanato, um cinema e uma exposição permanente dedicada à obra do pintor norueguês Kåre Tveter (1922-2012, foto). A paisagem dramática, as intensas mudanças de luz e a vulnerabilidade da natureza foram as suas fontes de inspiração. 


Tons suaves e abordagem minimalista para capturar o ambiente natural de Svalbard.


De olhos bem abertos. O Tratado de Svalbard estipula que o território não pode ser usado para fins militares, mas não há inocentes no fim do Mundo. No passado e no presente, houve e há pessoas que observam discretamente as movimentações na vizinhança. Da Guerra Fria à atualidade, o arquipélago mantém intacta a sua relevância geoestratégica: o Ocidente vigia a entrada e saída de navios e submarinos de Murmansk; a Rússia está atenta a um país da NATO, com os pés em sua casa. No futuro, com a abertura das rotas do Ártico ao comércio internacional, a importância de Svalbard será maior do que nunca. Fonte do mapa: Enciclopédia Britânica.


Northern Exposure. Até ao final do século passado, a população de Svalbard caraterizava-se pela longa permanência. Na atualidade, há uma grande mobilidade, devido às migrações internas e externas. As pessoas vivem, em média, 6-7 anos no território e 25% dos habitantes muda todos os anos. Na primeira noite, conheci alguns membros desta comunidade mutável que estavam a celebrar o último fim de semana de férias: uma educadora de infância de Bergen e um professor de norueguês de Bodø. O convite para beber uma cerveja foi o pretexto para uma conversa sobre o quotidiano de Longyearbyen e as motivações da mudança. Vieram em busca de novas experiências, do silêncio e da imensidão que a geografia e a natureza oferecem. Encontraram trabalho em Svalbard, mas também um lugar isolado e transitório para reorganizarem as suas vidas. Longe de casa, agrupam-se e formam uma espécie de segunda família, em que toda a gente se conhece e entreajuda, como se fosse uma aldeia. Nunca pensei despedir-me destes “amigos circunstanciais à beira-fiorde” com abraços. O gelo nórdico já não é o que era… ou será o efeito de uma “síndrome Svalbard”? Não sei… fica o registo comportamental. Por fim, a resposta para o mistério dos tailandeses em Longyearbyen: muitos mineiros passam férias na Ásia, apaixonaram-se pelas senhoras locais e trazem-nas para cá. Professores, cientistas, funcionários, guias, artistas, espiões, expatriados e antissociais, eis o retrato social da cidade mais ao norte do planeta.


Despedidas de Longyearbyen.


Voo Oslo – Lisboa. 
Regresso a casa, após cinco dias sem conhecer a noite e sem ter visto um urso.

Pyramiden

Viagem a um país que já não existe

Em linha reta, Longyearbyen e Pyramiden estão separados por 50 km. Contudo, a viagem não é simples nem rápida. Como não há estradas e o porto está bloqueado pelo gelo entre novembro e maio, no inverno, só é possível chegar de moto de neve. No verão, apenas de barco. Por terra, a distância duplica. Pelo mar, o tempo é vagaroso. Nos locais pouco ou nada tocados pelo homem, em que a Natureza impõe as suas condições, a distância e o tempo ganham outra dimensão, como se estivessem desalinhados com os ritmos da modernidade. A lentidão permite manter os sentidos sintonizados com a paisagem e testemunhar a vida selvagem do Ártico.

Em viagem I - VII:














Glaciar Nordenskiöld: 25 km de comprimento e 11 km de largura I – II.



Do convés, o primeiro vislumbre de Pyramiden é parecido com um filme de espionagem. Duas mulheres e um homem com barba à Lenine, de espingarda às costas, aguardam calmamente que o barco atraque no cais. Este é um dos desembarques mais estranhos que um viajante pode ter. Numa remota terra norueguesa, regressamos a um país que já não existe: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.


História. Pyramiden foi fundada pela Suécia em 1910. O nome tem origem no formato triangular de uma montanha vizinha (foto). A URSS comprou-a em 1927, para explorar as minas de carvão. No final da 2.ª Guerra Mundial, investiu na melhoria das condições de vida, com o objetivo de representar a sociedade soviética. Como podia ser visitada sem necessidade de visto, Pyramiden era uma montra para o Mundo. Havia habitações de qualidade, escola, hospital, piscina aquecida e um centro cultural. A criação de animais e a terra importada da Ucrânia asseguravam a produção de bens alimentares. Os salários eram mais elevados e havia mais liberdade. Talvez tenha sido um dos poucos lugares onde o comunismo trouxe felicidade. Quando a União Soviética colapsou, Pyramiden tornou-se supérflua. A diminuição da produção, a crise económica e a queda de um avião em 1996 combinaram-se para selar o seu destino. Em 1998, as minas encerraram e todos foram obrigados a partir. De repente, transformou-se numa cidade fantasma.


Pyramiden está repleta de vestígios da mineração em que sobressaem ferrovias que trepam a encosta íngreme. 

A maioria dos edifícios residenciais parece bem preservada, devido à decadência lenta nas condições climatéricas do Ártico. Tal como em Longyearbyen, as casas são construídas sobre estacas, por causa do permafrost. Se os edifícios fossem construídos no chão, o aquecimento derreteria lentamente o solo congelado, provocando instabilidade nas estruturas. Os prédios estão desabitados, mas não estão sem vida. As gaivotas aproveitam as janelas para nidificar e as raposas fazem a vistoria em busca de comida. 


O homem do cais apresenta-se. Chama-se Igor, é natural da Rússia e encontra-se em Pyramiden desde 2022. No verão, guia visitantes ocasionais. No inverno, regressa a casa. Reside no único local habitável da cidade, o Hotel Tulip, com mais camaradas que acompanham os forasteiros e fazem a manutenção das instalações. Este lugar não é para todos. Exige temperamento particular e resistência física e mental, para conviver com o isolamento, a solidão e o clima. O acesso à internet e a comunicação com o exterior são possíveis apenas numa encosta perto do hotel. Ninguém pode sair à rua sem estar armado. A probabilidade de um encontro com um urso é maior do que em Longyearbyen. Ocupa a maior parte do tempo livre com caminhadas, cinema e leitura. Felizmente, para ele, os russos deixaram filmes e literatura em qualidade e quantidade para não congelar de tédio no Ártico.


Na cantina comunitária. Depois de subir as escadas, encontra-se um grande mosaico soviético de temática nórdica: ursos, cães e um homem contemplam o sol, diante uma paisagem polar. A sala é um espaço desgastado, com papel de parede descascado e torneiras enferrujadas.


Na cozinha.

 
Os raios de sol atravessam os vidros da cantina e iluminam esqueletos de plantas mortas.


Um olhar para o exterior. À esquerda, o Hotel Tulip. Pode-se passar a noite e encomendar refeições, através da empresa russa Grumant. Devido ao conflito na Ucrânia, o Governador de Svalbard e os operadores turísticos de Longyearbyen suspenderam os contatos e não incentivam viagens às ex-colónias soviéticas. Além dos russos em trabalho, havia meia dúzia de polacos alojados.


Uma garrafa de vodka e um frasco de fruta vazios pousados numa bancada.


Símbolo da Arktikugol, a Empresa Estatal Soviética/Russa do Carvão do Ártico, que geria/gere Barentsburg e Pyramiden, colocado entre as Praças Lenin e Revolução de Outubro. O artista arredondou a latitude. A localização exata é 78, 67.º Norte.


No exterior da piscina.

Na entrada da piscina.


A maior estravagância de Pyramiden. Num local que deu prejuízo durante toda a sua existência, o custo de manutenção da piscina aquecida ficava para segundo plano quando comparado com a importância do equipamento (recorde-se: mostrar a qualidade de vida do Estado Soviético), sobretudo enquanto não havia nada de semelhante em Longyearbyen.


O busto de Lenine mais a norte do planeta.


Lenine em frente ao Centro Cultural.


Na praça principal, há um relvado importado da Sibéria que está ao cuidado das renas de Svalbard. Ao centro, Vladimir Lenine contempla o glaciar Nordenskiöld indiferente aos destinos da História.


A importância do lazer. O amplo salão de entrada do Centro Cultural Yuri Gagarin dá acesso a vários espaços no rés-do-chão e no 1.º andar: auditório, ginásio, biblioteca e diversas salas. Tal como a piscina, o edifício está sobredimensionado face ao número de habitantes, mas era essencial para proporcionar vida social, cultural, desportiva a uma população em contextos laboral e geográfico extremos.


No salão de entrada, pósteres de propaganda socialista e fotografias antigas, ao lado de outra estátua de Lenine. 


Atividades no auditório.


Rock n´Roll Polar Soviético.


O difícil equilíbrio entre manutenção e verdade, para não tropeçar na pequena ficção. As fotografias são reais, mas a cartolina e as cores são recentes. Se juntar a disposição da garrafa de vodka na cantina e a cuidada organização da secretária à entrada da piscina, parece que, ali e acolá, houve umas encenações, para acentuar a carga nostálgica de um tempo que passou ou o drama de um abandono à pressa.


Há um arquivo de filmes soviéticos que permite organizar um festival. Deve ser caso único no mundo: um evento cinéfilo numa cidade fantasma.


Uma balalaica e um sintetizador numa sala.


O auditório com o piano desafinado mais ao norte do mundo.


O ginásio arrumado e limpo.


Há vodka na Biblioteca. Como ninguém compreende a língua, os livros permanecem sossegados nas estantes. No momento, a biblioteca funciona como espaço comercial e de convívio, antes de terminar a visita. Num canto são vendidas recordações, t-shirts, livros, gorros e matrioskas. No lado oposto, há um bar decorado com discos de vinil, onde se pode beber café, cerveja ou vodka.


De regresso à Praça Lenine.


Os últimos dias da cidade fantasma. Os dias soviéticos pertencem ao passado. Hoje, é uma excentricidade deslocada do tempo que desperta curiosidade. Apesar da colocação artificial de alguns objetos, não me esqueço do quadro maior: as circunstâncias naturais e políticas que fizeram deste local isolado único no mundo. Confesso que vou embora com o desconforto de ter visitado tudo à pressa e o lamento de não ter ficado uma noite. Este é o tempo em que o mito da “cidade fantasma” está a chegar ao fim. Em verdade, nunca o foi. Nem mesmo durante as duas décadas pós-abandono. Há potencial e ideias para o futuro. O hotel foi renovado para desenvolver o turismo e há planos para criar um centro de ciência internacional. Por enquanto, organizam-se manifestações para afirmar a presença russa em Svalbard. Desde 2023, no dia 9 de maio, celebra-se, em Pyramiden, o “Dia da Vitória” sobre a Alemanha Nazi. No topo da montanha, permanece uma bandeira que esvoaça ao sol e ao vento, no final de uma visita de verão.


Navegação no Billiefiorden.

Encontro da água doce de um glaciar (castanho) com a água salgada do fiorde (azul).


A tragédia da Casa Sueca. No caminho de volta para Longyearbyen, a rota levou-nos por Skansbukta, uma baía onde ocorreu o episódio da Svenskhuset. A “Casa Sueca” é o edifício mais antigo de Svalbard que chegou até aos nossos dias. É uma cabana de madeira localizada no Cabo Thordsen, em Isfjorden, construída pelo geólogo sueco-finlandês Adolf Erik Nordenskiöld, em 1872. No outono desse ano, um navio ficou preso no gelo em Gråhuken, no norte de Sptisbergen. A tripulação foi salva, mas dezassete caçadores foram enviados para a Svenskhuset, onde podiam encontrar alimentos e permanecer até à primavera. No verão de 1873, uma expedição foi enviada para resgatar os homens, mas descobriu que estavam todos mortos: uns, nas suas camas; outros, enterrados fora de casa. O mistério só seria resolvido em 2008. Amostras recolhidas demonstraram que foram envenenados por chumbo existente nas conservas. Fonte da fotografia: Wikipédia. 


De regresso a Longyearbyen.