sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Pyramiden

Viagem a um país que já não existe

Em linha reta, Longyearbyen e Pyramiden estão separados por 50 km. Contudo, a viagem não é simples nem rápida. Como não há estradas e o porto está bloqueado pelo gelo entre novembro e maio, no inverno, só é possível chegar de moto de neve. No verão, apenas de barco. Por terra, a distância duplica. Pelo mar, o tempo é vagaroso. Nos locais pouco ou nada tocados pelo homem, em que a Natureza impõe as suas condições, a distância e o tempo ganham outra dimensão, como se estivessem desalinhados com os ritmos da modernidade. A lentidão permite manter os sentidos sintonizados com a paisagem e testemunhar a vida selvagem do Ártico.

Em viagem I - VII:














Glaciar Nordenskiöld: 25 km de comprimento e 11 km de largura I – II.



Do convés, o primeiro vislumbre de Pyramiden é parecido com um filme de espionagem. Duas mulheres e um homem com barba à Lenine, de espingarda às costas, aguardam calmamente que o barco atraque no cais. Este é um dos desembarques mais estranhos que um viajante pode ter. Numa remota terra norueguesa, regressamos a um país que já não existe: a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.


História. Pyramiden foi fundada pela Suécia em 1910. O nome tem origem no formato triangular de uma montanha vizinha (foto). A URSS comprou-a em 1927, para explorar as minas de carvão. No final da 2.ª Guerra Mundial, investiu na melhoria das condições de vida, com o objetivo de representar a sociedade soviética. Como podia ser visitada sem necessidade de visto, Pyramiden era uma montra para o Mundo. Havia habitações de qualidade, escola, hospital, piscina aquecida e um centro cultural. A criação de animais e a terra importada da Ucrânia asseguravam a produção de bens alimentares. Os salários eram mais elevados e havia mais liberdade. Talvez tenha sido um dos poucos lugares onde o comunismo trouxe felicidade. Quando a União Soviética colapsou, Pyramiden tornou-se supérflua. A diminuição da produção, a crise económica e a queda de um avião em 1996 combinaram-se para selar o seu destino. Em 1998, as minas encerraram e todos foram obrigados a partir. De repente, transformou-se numa cidade fantasma.


Pyramiden está repleta de vestígios da mineração em que sobressaem ferrovias que trepam a encosta íngreme. 

A maioria dos edifícios residenciais parece bem preservada, devido à decadência lenta nas condições climatéricas do Ártico. Tal como em Longyearbyen, as casas são construídas sobre estacas, por causa do permafrost. Se os edifícios fossem construídos no chão, o aquecimento derreteria lentamente o solo congelado, provocando instabilidade nas estruturas. Os prédios estão desabitados, mas não estão sem vida. As gaivotas aproveitam as janelas para nidificar e as raposas fazem a vistoria em busca de comida. 


O homem do cais apresenta-se. Chama-se Igor, é natural da Rússia e encontra-se em Pyramiden desde 2022. No verão, guia visitantes ocasionais. No inverno, regressa a casa. Reside no único local habitável da cidade, o Hotel Tulip, com mais camaradas que acompanham os forasteiros e fazem a manutenção das instalações. Este lugar não é para todos. Exige temperamento particular e resistência física e mental, para conviver com o isolamento, a solidão e o clima. O acesso à internet e a comunicação com o exterior são possíveis apenas numa encosta perto do hotel. Ninguém pode sair à rua sem estar armado. A probabilidade de um encontro com um urso é maior do que em Longyearbyen. Ocupa a maior parte do tempo livre com caminhadas, cinema e leitura. Felizmente, para ele, os russos deixaram filmes e literatura em qualidade e quantidade para não congelar de tédio no Ártico.


Na cantina comunitária. Depois de subir as escadas, encontra-se um grande mosaico soviético de temática nórdica: ursos, cães e um homem contemplam o sol, diante uma paisagem polar. A sala é um espaço desgastado, com papel de parede descascado e torneiras enferrujadas.


Na cozinha.

 
Os raios de sol atravessam os vidros da cantina e iluminam esqueletos de plantas mortas.


Um olhar para o exterior. À esquerda, o Hotel Tulip. Pode-se passar a noite e encomendar refeições, através da empresa russa Grumant. Devido ao conflito na Ucrânia, o Governador de Svalbard e os operadores turísticos de Longyearbyen suspenderam os contatos e não incentivam viagens às ex-colónias soviéticas. Além dos russos em trabalho, havia meia dúzia de polacos alojados.


Uma garrafa de vodka e um frasco de fruta vazios pousados numa bancada.


Símbolo da Arktikugol, a Empresa Estatal Soviética/Russa do Carvão do Ártico, que geria/gere Barentsburg e Pyramiden, colocado entre as Praças Lenin e Revolução de Outubro. O artista arredondou a latitude. A localização exata é 78, 67.º Norte.


No exterior da piscina.

Na entrada da piscina.


A maior estravagância de Pyramiden. Num local que deu prejuízo durante toda a sua existência, o custo de manutenção da piscina aquecida ficava para segundo plano quando comparado com a importância do equipamento (recorde-se: mostrar a qualidade de vida do Estado Soviético), sobretudo enquanto não havia nada de semelhante em Longyearbyen.


O busto de Lenine mais a norte do planeta.


Lenine em frente ao Centro Cultural.


Na praça principal, há um relvado importado da Sibéria que está ao cuidado das renas de Svalbard. Ao centro, Vladimir Lenine contempla o glaciar Nordenskiöld indiferente aos destinos da História.


A importância do lazer. O amplo salão de entrada do Centro Cultural Yuri Gagarin dá acesso a vários espaços no rés-do-chão e no 1.º andar: auditório, ginásio, biblioteca e diversas salas. Tal como a piscina, o edifício está sobredimensionado face ao número de habitantes, mas era essencial para proporcionar vida social, cultural, desportiva a uma população em contextos laboral e geográfico extremos.


No salão de entrada, pósteres de propaganda socialista e fotografias antigas, ao lado de outra estátua de Lenine. 


Atividades no auditório.


Rock n´Roll Polar Soviético.


O difícil equilíbrio entre manutenção e verdade, para não tropeçar na pequena ficção. As fotografias são reais, mas a cartolina e as cores são recentes. Se juntar a disposição da garrafa de vodka na cantina e a cuidada organização da secretária à entrada da piscina, parece que, ali e acolá, houve umas encenações, para acentuar a carga nostálgica de um tempo que passou ou o drama de um abandono à pressa.


Há um arquivo de filmes soviéticos que permite organizar um festival. Deve ser caso único no mundo: um evento cinéfilo numa cidade fantasma.


Uma balalaica e um sintetizador numa sala.


O auditório com o piano desafinado mais ao norte do mundo.


O ginásio arrumado e limpo.


Há vodka na Biblioteca. Como ninguém compreende a língua, os livros permanecem sossegados nas estantes. No momento, a biblioteca funciona como espaço comercial e de convívio, antes de terminar a visita. Num canto são vendidas recordações, t-shirts, livros, gorros e matrioskas. No lado oposto, há um bar decorado com discos de vinil, onde se pode beber café, cerveja ou vodka.


De regresso à Praça Lenine.


Os últimos dias da cidade fantasma. Os dias soviéticos pertencem ao passado. Hoje, é uma excentricidade deslocada do tempo que desperta curiosidade. Apesar da colocação artificial de alguns objetos, não me esqueço do quadro maior: as circunstâncias naturais e políticas que fizeram deste local isolado único no mundo. Confesso que vou embora com o desconforto de ter visitado tudo à pressa e o lamento de não ter ficado uma noite. Este é o tempo em que o mito da “cidade fantasma” está a chegar ao fim. Em verdade, nunca o foi. Nem mesmo durante as duas décadas pós-abandono. Há potencial e ideias para o futuro. O hotel foi renovado para desenvolver o turismo e há planos para criar um centro de ciência internacional. Por enquanto, organizam-se manifestações para afirmar a presença russa em Svalbard. Desde 2023, no dia 9 de maio, celebra-se, em Pyramiden, o “Dia da Vitória” sobre a Alemanha Nazi. No topo da montanha, permanece uma bandeira que esvoaça ao sol e ao vento, no final de uma visita de verão.


Navegação no Billiefiorden.

Encontro da água doce de um glaciar (castanho) com a água salgada do fiorde (azul).


A tragédia da Casa Sueca. No caminho de volta para Longyearbyen, a rota levou-nos por Skansbukta, uma baía onde ocorreu o episódio da Svenskhuset. A “Casa Sueca” é o edifício mais antigo de Svalbard que chegou até aos nossos dias. É uma cabana de madeira localizada no Cabo Thordsen, em Isfjorden, construída pelo geólogo sueco-finlandês Adolf Erik Nordenskiöld, em 1872. No outono desse ano, um navio ficou preso no gelo em Gråhuken, no norte de Sptisbergen. A tripulação foi salva, mas dezassete caçadores foram enviados para a Svenskhuset, onde podiam encontrar alimentos e permanecer até à primavera. No verão de 1873, uma expedição foi enviada para resgatar os homens, mas descobriu que estavam todos mortos: uns, nas suas camas; outros, enterrados fora de casa. O mistério só seria resolvido em 2008. Amostras recolhidas demonstraram que foram envenenados por chumbo existente nas conservas. Fonte da fotografia: Wikipédia. 


De regresso a Longyearbyen.