Um Porto Vintage de 1836 no Ártico
Uma geografia particular. Tudo o que existe em Svalbard leva a
chancela “Mais a Norte”: a povoação Ny-Ålesund, o aeroporto, a universidade, o
posto de correios, a bomba de gasolina (foto), o restaurante, a galeria e o resto
que se possa enumerar e equacionar, inclusive, uma sanita. Devido à latitude
elevada de Longyearbyen (78.ºN) e à proximidade do Polo Norte (1.316km), há
dois períodos opostos de quatro meses: noite polar durante o inverno (de
outubro a fevereiro) e dia polar durante o verão (de abril a agosto). No meio,
intervalos rápidos de transição, mistos de maior ou menor escuridão e
luminosidade. No verão, não há auroras boreais, mas temos pores-do-sol
infinitos. Para adaptar-me ao excesso de luz, vagueio de dia com uns óculos de
sol e à “noite” durmo com máscara e espírito de sesta dominical.
Não se deve nascer nem morrer. Em Longyearbyen há um pequeno hospital
para cuidados básicos. Situações complicadas ou mulheres na fase final da
gravidez são despachadas para o continente. Por causa do permafrost (solo
congelado permanentemente), o enterro coloca problemas de saúde pública, pois
os corpos não se decompõem e a pressão empurra-os para a superfície. O antigo
cemitério (foto) encerrou na década de 1950, quando se descobriram vítimas bem
preservadas da pandemia de gripe de 1918. Se houver uma fatalidade, o cadáver é
transladado para a Noruega ou para o país natal. Tirando o princípio e o fim, a
vida decorre com normalidade: as crianças brincam, os jovens estudam, os
adultos trabalham e os idosos regressam à origem. Afinal, quem quer passar a
última etapa da vida num congelador sem luz durante quase meio ano?
Cruzes brancas com mineiros vítimas de acidentes de trabalho e da gripe espanhola. Em primeiro plano, a lápide do Capitão Trond Astrup Vigtel morto em combate, aquando do ataque alemão, em 1943.
Nas
Sykehustrappa, as “Escadas do Hospital”. Localizados junto da
Igreja Luterana na “velha” Longyearbyen, os cinco degraus desgastados são tudo
o que resta do primeiro hospital, destruído durante a 2.ª Guerra Mundial. Esta
frágil estrutura de madeira não nos leva a lado nenhum, mas tem um significado
especial para a comunidade local. Após a longa noite polar, os habitantes
reúnem-se aqui, em 8 de março, para celebrar o ritual do regresso do Sol. O
inverno “termina” quando o primeiro raio toca a testa de alguém que está no
degrau mais alto das Sykehustrappa. Os ingredientes estão cá todos: a
monotonia da paisagem, a amplitude de horizontes, a prolongada escuridão, a
introspeção da alma. Há dois-três mil anos, se Svalbard fosse habitada,
tínhamos o cenário montado para uma religião natural; hoje, temos o pretexto
para o “Festival do Sol”, que anima a cidade durante uma semana.
Um padre na Póvoa de Varzim. No verão, durante cinco semanas, o padre que
se encontra em Longyearbyen, acompanhado pela sua mulher, está a substituir o
“colega efetivo”. Conversámos alguns minutos, enquanto trabalhava no portátil.
A igreja é mais do que um espaço religioso. Ateus e crentes de outras religiões
são bem-vindos a este lugar de convívio social, aberto 24 horas, todos os dias
do ano. Ao saber a minha nacionalidade,
disse-me que tinha feito o Caminho de Santiago, junto à costa, do Porto a
Compostela. No fim do mundo norueguês, conheci um indivíduo que esteve na Póvoa
de Varzim.
Refotografia de um casamento na Igreja Luterana, 2022 - 1960. Exposição “Layers of Time – Everyday Life in Svalbard”. Nordnorsk Kunstmuseum/Galeria Nordover.
Uma história de sobrevivência. Cinco jovens de Longyearbyen estavam em Utøya, a 40 km de Oslo, em 22 de julho de 2011. Três escaparam sem ferimentos graves; Johannes Buø, de 14 anos, perdeu a vida; Viljar Hanssen, de 17 anos, ficou gravemente ferido. Quando A.B. desembarcou na ilha e começou a disparar indiscriminadamente, a sua preocupação imediata foi proteger o irmão mais novo, Torje. Apesar de estarem escondidos num pequeno declive, foram vistos pelo atirador. Torje escapou, mas Viljar foi atingido cinco vezes. Ao fim de seis dias, acordou do coma e tomou conhecimento da nova realidade: perdeu o olho direito, três dedos da mão esquerda e tinha alojado junto ao cérebro fragmentos de bala que não puderam ser removidos. Consequência: podia morrer a qualquer momento. Apesar da ameaça permanente, reaprendeu a andar, a escrever e a viver. Foto: Viljar Hanssen, com 18 anos, 2012, "One Day in History", Andrea Gjestvang.
Viljar
Hanssen na atualidade. Advogado e político em Tromsø, Norte da Noruega. Fonte
da fotografia: https://no.linkedin.com/posts/viljar-hanssen-05804ba8_i-dag-ble-jeg-valgt-til-%C3%A5-lede-kommune-og-activity-7117859826386280448-EsSh
A fauna local, entre o inusitado e o selvagem. Os cães são animais de estimação muito acarinhados, puxam trenós e protegem os donos. Os gatos são proibidos, para não porem em risco as aves nativas. As renas passeiam livremente em Longyearbyen, porque não têm predadores naturais e estão habituadas à presença humana. Em Svalbard, além de ursos polares, encontram-se raposas, morsas, focas, baleias, gansos e patos, incluindo o êider, o rei dos edredões. Para um visitante ocasional, com tempo e orçamento limitados, uma observação cuidadosa do livro “Svalbard Exposed”, dos fotógrafos Roy Mangersnes e Ole Jørgen Liodden (foto), facilita o contato com a vida animal e equivale a um curso intensivo de biologia do Ártico.
Uma vida a voar até ao fim do Mundo. Observe-se, por exemplo, a vida das andorinhas do ártico (sterna paradisaea), uma elegante ave marinha, com penugem cinza-claro, bico vermelho, assas longas e cauda em forquilha (foto). Todos os anos migra do Ártico para a Antártida e vice-versa, seguindo os verões polares, percorrendo uma distância de 80.000km. É a maior migração animal da Terra. No final de uma vida de 30 anos, voou, em média, 2.400.000km, semelhante a três viagens de ida e volta à Lua. Quando os seus ninhos estão em perigo, atacam em bando, um comportamento que recorda “Os Pássaros”, de Hitchcock.
A base para o Polo Norte. No final do século XIX, a comunidade científica nórdica vivia obcecada com a conquista dos polos. Graças ao “verão suave” que a Corrente do Golfo oferece a Svalbard, que impede que fique bloqueada pelo gelo, o arquipélago foi a base para várias expedições marítimas, terrestres e aéreas. A conquista do “Grande Norte” continua a ser um tema controverso. Quem chegou primeiro? Não há uma resposta inequívoca. Apenas histórias felizes, trágicas e nebulosas que alimentam a abundante literatura sobre a exploração dos limites da superfície terrestre.
Amundsen em Svalbard, em 1925. Em 1926, fez a primeira travessia do Ártico no
dirigível Norge. Dois anos mais tarde, desapareceu no Polo Norte numa missão de
resgate.
O mistério congelado. Em 11 de julho de 1897, um trio de exploradores suecos, constituído pelo engenheiro Salomon August Andrée, o fotógrafo Nils Strindberg e o meteorologista Knut Fraenkel, partiu, num balão de ar quente, em direção ao polo norte. Três dias depois, o aparelho caiu. Ao longo de três meses, caminharam 400km sobre o mar gelado, enquanto o mundo desconhecia o seu paradeiro. Corpos, diários e rolos foram encontrados 33 anos mais tarde, em Kvitøya (ilha de Svalbard). Pouco antes de morrerem, tinham celebrado o avistamento de terra firme com um Porto Vintage de 1836. Na atualidade, a sua morte continua objeto de estudo e especulação, tal como os olhares sobre as fotografias de Nils Strindberg: um documento histórico, uma luta pela sobrevivência ou um imaginário fantasmagórico? “Into the Mists – S.A. Andrée’s Balloon Expedition Towards the North Pole”, Beau Riffenburgh, 2018 (foto).
O guardião da memória do Homem e da Natureza. No Museu de Svalbard, a
principal atração é um urso macho embalsamado de 505kg, morto em legítima
defesa em 2005 (foto). Mas, a aprendizagem mais surpreendente pertence ao tempo
geológico. Há cerca de 400 milhões de anos, o arquipélago situava-se perto do
Equador e tinha uma floresta luxuriante que absorvia dióxido de carbono. Hoje,
é o oposto. Localiza-se próximo do Polo Norte e é rico em carvão formado pelo
depósito dessa vegetação tropical que, ao ser usado na produção de energia, é
um dos grandes poluidores atmosféricos. Se a História do Homem é marcada pela
sobrevivência num ambiente extremo, a História Natural define-se pela ironia
excessiva.
Há 260 milhões de anos, Svalbard já tinha feito quase metade do caminho em relação à sua atual localização. Museu de Svalbard, Instituto Polar Norueguês.
As crianças brincam num plesiossauro, um ser marinho carnívoro pré-histórico,
que viveu em Svalbard há 150 milhões de anos, enquanto os pais observam,
conversam ou leem.
A sociedade nas chuteiras. A União Soviética tinha duas colónias
mineiras em Spitzbergen que são administradas, atualmente, pela Rússia:
Barentsburg, com 500 habitantes, a segunda localidade mais povoada do
arquipélago, e Pyramiden, abandonada em 1998. Nos dias de glória, teve cerca de
mil habitantes; no verão de 2024, tem vinte e cinco residentes sazonais que
fazem a manutenção das estruturas e guiam os forasteiros que lá chegam em busca
da variante polar soviética (ver publicação “Pyramiden - Viagem a um país que já não existe”). Nos arquivos do Museu
de Svalbard, há uma fotografia que mostra uma partida de futebol entre mineiros
noruegueses e soviéticos, disputada em 1964, tão relevante para a História do Século XX como o célebre confronto entre filósofos gregos e alemães, realizado pelos
Monty Python, em 1972. Mais do que um jogo, um modo de vida em confronto.
Sessão de terapia de luz em Pyramiden, para colmatar a ausência de
luminosidade durante o inverno polar. Exposição “Layers of Time – Everyday Life in Svalbard”.
Nordnorsk Kunstmuseum/Galeria Nordover.
Jogo de xadrez e momentos sociais entre noruegueses e soviéticos em Barentsburg. Exposição “Layers of Time – Everyday Life in Svalbard”. Nordnorsk Kunstmuseum/Galeria Nordover.