sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Longyearbyen I

 Condicionado pelos ursos

Chegada. Os cimos das montanhas negras cobertas de neve são a primeira imagem que se vê da janela do avião, após uma viagem de três horas desde Oslo. A aproximação à pista faz-se pelo meio de um fiorde profundo ladeado de encostas escarpadas e glaciares que se precipitam no mar. Para entrar no território é necessário passaporte, incluindo noruegueses. O país faz parte do Espaço Schengen, mas Svalbard, não. Depois do controlo alfandegário, preparo-me para o meu segundo inverno de 2024. À saída do aeroporto, encontro-me com o significado de Svalbard, “Costa Fria”.


A mais breve história de Svalbard. Em 1194, surgiu a primeira referência escrita num texto islandês. Em 1596, o navegador neerlandês Willem Barents deu a conhecer o território ao mundo moderno, quando procurava uma passagem pelo nordeste para o Oriente. Em 1920, o Tratado de Svalbard reconheceu a soberania norueguesa e o direito dos países signatários de se instalarem livremente. No passado, a sua importância deveu-se à baleação, às peles e ao carvão. No presente, as atividades principais são a investigação científica e o turismo. Fonte do mapa: Wikipédia. Verde claro, Noruega; verde escuro, Svalbard.


Mineiros nos arredores de Longyearbyen. Atualmente, apenas uma das dez minas está em funcionamento. Exposição “Layers of Time – Everyday life in Svalbard”. Nordnorsk Kunstmuseum/Galeria Nordover.


Instituto Polar Norueguês.


60% gelo, 27% rocha e 13% vegetação rasteira. Svalbard é um deserto cujo fascínio reside na imensidão do nada. Spitsbergen é a maior e a única das 9 ilhas do arquipélago com população residente. A maioria vive em Longyearbyen, fundada, em 1906, por John Munro Longyear, um empresário norte-americano ligado à exploração do carvão. Os números oficiais assinalam 2.897 habitantes e 53 nacionalidades. A maior parte é norueguesa; seguem-se russos e… tailandeses! Os únicos nativos são ursos polares, os maiores predadores terrestres do planeta. Calcula-se que sejam cerca de 3 mil. O território pertence-lhes. Os homens são intrusos de passagem. Fonte do mapa: Wikipédia. As quatro povoações de Svalbard.


Um urso polar inofensivo.

Longyearbyen.

Estacas da antiga Longyearbyen, incendiada em 1943, aquando do ataque alemão.


Longyearbyen está organizada em torno de dois eixos como se fosse um “T”: um marginal junto ao fiorde e outro interior entre duas montanhas. No centro localizam-se os serviços modernos e as antigas estruturas ligadas à mineração. A leste distinguem-se casas coloridas de madeira. Coberta por um manto branco, daria, provavelmente, uma impressão inicial mais favorável. No verão, parece esventrada, com os esgotos à superfície, para não congelarem, e bruta, com edifícios robustos, para resistirem ao frio do Ártico. Há, ainda, um prolongamento para o interior denominado Nybyen, destinado, inicialmente, a servir de alojamento aos mineiros. Do aeroporto ao albergue, vista de relance da janela do autocarro, é um local pouco apelativo inserido numa paisagem soberba.


Esgotos à superfície.


Sinalização sem efeito no verão.


Motos de neve à espera do inverno.


Tuk-tuks polares.


Zona residencial leste I - III.






Rua principal de Longyearbyen, 21H00.


A mina do Pai Natal. Junto ao meu alojamento em Nybyen, a Guesthouse 102, um antigo barracão mineiro transformado em albergue, situa-se, numa encosta montanhosa, um conjunto de estruturas sinistras, que pertenceu a uma mina de carvão abandonada, a Gruve 2. Para os habitantes locais, principalmente, para as crianças, é um local feliz. É aqui que vive o Pai Natal. Em dezembro, os petizes escrevem cartas e depositam-nas numa caixa de correio no sopé da montanha. Afinal, ao contrário do imaginário luminoso e colorido difundido pelo mundo, a residência do homem é negra e grotesca.


Guesthouse 102.


Sala de estar, Guesthouse 102.


Aviso aos hóspedes, Guesthouse 102.


Na fronteira. No limite sul de Nybyen encontra-se uma das três placas da cidade que demarcam o fim da civilização e o princípio da natureza selvagem. Diante da montanha Sarkofagen (Sarcófago), o sinal alerta para a presença de ursos para além desse ponto. Dupla chamada de atenção para a direção dos próximos passos. Numa análise realista, é improvável que apareçam nas imediações da cidade, sobretudo no verão. Em geral, afastam-se do movimento urbano e preferem caçar noutras paragens. Contudo, como não sabemos se, na linha dos seus primos do sul e leste europeu, os ursos noruegueses respeitam a sinalização, o melhor é dar meia volta e regressar.


Embora não se veja, o Sarkofagen está cercado a sul por um glaciar. As águas escuras que correm são provenientes do gelo derretido.


Na marginal. Quem não tem licença de porte nem treino de tiro deve sair de cidade acompanhado por um guia armado. Esta condicionante limita a movimentação independente e encarece a participação nas atividades organizadas. Dois argumentos para levar o aviso a sério: primeiro, antes de o urso ser visto, o homem foi sentido por ele há mais tempo; segundo, houve encontros que não terminaram bem. Na verdade, o protocolo obriga a trazer algo que assuste e afugente o animal, não necessariamente uma espingarda. Sendo assim, penso, em alternativa, na banda sonora do filme “Meu Querido Mês de Agosto”.

Na entrada do hospital.


Numa loja de peles.


Tirar o calçado à entrada de casa ou dos espaços públicos. Esta tradição remonta ao tempo em que as únicas pessoas que viviam em Longyearbyen eram mineiros que traziam nas botas a poeira preta do carvão. Hoje, a maior parte das minas estão encerradas, mas o hábito mantém-se e ajuda a manter o piso livre da neve e do gelo. É praticado nos hotéis, museus, bares, restaurantes e na Guesthouse 102 (foto). Não há motivos para sentimentos de desconforto: ninguém presta atenção às meias rotas e parece que a população está imune ao sulfato de peúga. 


No posto de turismo. A partir das duas fotos é possível identificar as minhas botas.


No Svalbardbutikken, o único supermercado. Há uns anos, comprei kiwis da Nova Zelândia e laranjas da África do Sul no Corvo. Agora, voltei a reencontrá-los no Ártico. Não existem lugares remotos para a globalização. Para comprar bebidas alcoólicas, os visitantes apresentam o bilhete de avião e os residentes mostram o cartão de cotas. Estes só podem comprar um litro de bebidas destiladas e 24 cervejas por mês. Os limites previnem abusos e travam o alcoolismo, facilitado pela depressão das longas noites polares e pela ausência dos pesados impostos do continente. No final, se não houver cuidado, a isenção de IVA não impede que a conta seja um choque e pavor. Há que pagar o transporte das mercearias e dos frescos.


Nordpolet é o departamento onde se vende álcool. É o único produto com um preço substancialmente inferior ao praticado nos bares locais e na Noruega continental. Em Longyearbyen, uma cerveja custa entre 1,80€-2,30€ no Nordpolet e 7€-8€ num bar. Em Oslo, o preço varia entre 9€-10€.


Svalbard Bryggeri, cerveja artesanal feita com água do glaciar Bogerbreen, Svalbar.


Stout Svalbard Bryggeri, Kroa.