Espanta-Pardais n.º 5, maio 1995, relata a viagem de Conde Santiago ao Cáucaso.
O
ano de 1994 estava a chegar ao fim. O Muro de Berlim tinha caído, o antigo Império
Soviético metia mais água do que um submarino roto e Boris Ieltsin engolia
vodka pelas goelas abaixo como se não houvesse amanhã. No final de uma noite
fria de inverno, Neto Catritas, redator-chefe do Fanzine Espanta-Pardais,
decidiu enviar um repórter-especial a Nalchik, capital da República da
Cabardino-Balcária, com o objetivo de observar a ex-URSS a
partir da sua cratera mais explosiva, o Cáucaso. Como sempre, o rasgo era
brilhante, mas a concretização adivinhava-se turva. Misto de irracionalidade
juvenil com entusiasmo alavancado nos vapores do tintol, a ideia-relâmpago
carecia de meios financeiros robustos e de suporte logístico básico. Depois de
refletir com a ajuda de dois penaltis Macieira, Joaquim Heitor Conde Santiago
aceitou o desafio tal como um carneiro inconsciente aguarda a degolação. Sem
hesitação nem medo!
Na
manhã da partida, levantou-se cedo para encher os pulmões de brisa atlântica e
gravar os sons do seu quotidiano que gostaria de transportar para as montanhas
distantes, nomeadamente, o grasnar das gaivotas aquando da entrada das
traineiras no porto de pesca e o arrulhar dos pombos que costumava alimentar na
Praça do Município. Nos bolsos da farpela levava um manual "Russo sem Mestre",
resgatado das poeirentas prateleiras da Livraria Calafate, e um velho guia Baedeker,
oferecido pela sua tia cartomante Ofélia Paz dos Anjos. Na mala, um sofisticado
kit de sobrevivência: duas calças de fazenda compradas na Feira de Sangalhos, duas
camisolas rafadas Thermotebe, seis latas de petingas em escabeche Luças, uma
garrafa de anis escarchado Ferreira Duque, três maços de tabaco Português Suave, uma navalha cabriteira e um envelope amarelado, com umas pesetas que tinham sobrado de uma excursão ao
El Corte Inglés de Vigo.
Contra todas as previsões, o homem regressou e escreveu relato daquilo que viu e ouviu. No dia em que foi posto à venda, o Espanta-Pardais n.º 5 desapareceu rapidamente dos quiosques sombrios e dos bares mal frequentados da cidade e, com ele, a reminiscência de uma reportagem singular no panorama fanzinístico nacional. Passados 28 anos, reencontrei-a num arquivo morto e segui parte da mítica viagem de Conde Santiago pela Estrada Militar Georgiana até aos confins da Europa. Devido ao conflito russo-ucraniano e às sanções em vigor, não foi possível atravessar a fronteira e chegar a Nalchik. Mas fica o registo do momento em que a realidade esteve próxima do absurdo.
Um
abraço ao Neto Catritas, em memória de um tempo em que o futuro não tinha
limites.
O
Cáucaso é o lugar onde o helenismo e a cultura judaico-cristã encontram o Oriente. É uma zona de transição continental, mistura de
povos e conflitos armados. Estendendo-se desde o Mar Negro até às costas do Mar
Cáspio, o Cáucaso abriga o Monte Elbrus, o pico mais alto da Europa, a 5.642
metros e, entre outros, o Monte Kazbegi, com 5.047 metros, um vulcão adormecido
localizado na fronteira que separa a Geórgia e a Rússia.
A
Estrada Militar Georgiana foi construída em 1769, para consolidar a presença
russa na região, e assenta em caminhos que remontam à Antiguidade, por ser a
única passagem natural do Cáucaso. Liga Tbilisi a Vladikavkaz, capital da
Ossétia do Norte, na Federação Russa, numa extensão de 208 km. Stepantsminda/Kazbegi, a última cidade georgiana, localiza-se a 12 km da
fronteira e a 155 km de Tbilissi. Em condições normais, o trajeto demora 3 a 4
horas a percorrer, dependendo do tráfego e das condições climatéricas.
Reservatório Zhinvali. Os soviéticos construíram a barragem nos anos 80, porque Tbilisi estava a crescer rapidamente e precisava de um novo abastecimento de água. Os habitantes locais temiam a perda de Zhinvali. Apesar dos protestos, a área foi inundada e a cidade encontra-se a 75 metros de profundidade.
Uma
pequena história medieval. O Castelo Ananuri pertenceu aos duques de Aragvi,
que governaram a área desde o século XIII. Um dia, com o castelo cercado
há bastante tempo, os inimigos estavam intrigados em relação à capacidade de
resistência dos ocupantes. Eles desconheciam que havia um túnel que permitia
o abastecimento de comida e água. Uma mulher chamada Ana foi capturada e
torturada para revelar o segredo. Mas ela recusou. O castelo foi
então nomeado em sua homenagem, Ananuri.
Cozinha
georgiana III: Khinkali (bolos de massa recheados com carne), prato
principal do país, originários de uma pequena localidade de montanha, situada
na estrada militar, chamada Pasanauri.
Gudauri / Monumento
da Amizade Geórgia-Rússia. Grande estrutura redonda de betão
armado com vista para o Vale do Diabo. Foi construído em 1983, para
celebrar o bicentenário do Tratado de Georgievsk e a amizade entre a Rússia e a
Geórgia. À época, as ameaças territoriais e religiosas vindas do sul
muçulmano colocavam em perigo a identidade georgiana, o que fez com que o país
se submetesse ao protetorado russo. É um dos mais conhecidos edifícios do
modernismo soviético, devido ao enquadramento paisagístico e aos
extraordinários azulejos que decoram o interior. Próximo fica o ponto mais
elevado da estrada militar, o Jvari Pass (Passagem da Cruz, 2.395m). Nesse lugar, há um cemitério com soldados alemães (prisioneiros da 2.ª G.M.) que faziam trabalhos de manutenção (túneis, reparações, limpezas).
A
Igreja da Trindade Gergeti foi construída no século XIV e está situada a 2.170
m de altitude, junto ao rio Chkheri, na encosta do Kazbegi. Em tempos de
perigo, as relíquias religiosas de Mtskheta (antiga capital da Geórgia) eram guardadas no seu
interior. Durante o período soviético, o serviço religioso foi proibido. Hoje,
a igreja está ativa. A vista é o bilhete-postal do país.
Na URSS, o Hotel Rooms era um alojamento da elite. Atualmente, está aberto ao povo. A vista da varanda é o cenário perfeito para o final desta viagem. Daqui vê-se a montanha Kazbegi, homenagem ao escritor georgiano (Alexandre Kazbegi, 1848-1893) que escreveu a obra “O Parricida”, cujo o herói, chamado “Koba”, é um defensor dos pobres, despreza a autoridade e é propenso à violência. Foi pseudónimo revolucionário de Estaline.