domingo, 3 de setembro de 2023

Sevan

A Casa dos Escritores e a Cantina do Lago Sevan

Em 1932, os arquitetos Gevorg Kochar (1901-1973) e Mikael Mazmanyan (1899-1971) projetaram a Casa dos Escritores de Sevan, um prédio de quatro andares, com varandas curvas e uma torre envidraçada com vista sobre o lago. Seria construída numa ilha, diante do Mosteiro Sevanavank (séc. IX), com o objetivo de servir de inspiração à criação artística.

Em 1935, ano em que o retiro para a União dos Escritores Socialistas da Arménia abriu, o lago estava a mudar de forma, devido ao desvio de água para irrigação e produção elétrica. Em vinte anos, com a redução de 40% do seu volume, a ilha onde se localizava a casa daria lugar a uma península. Em 1937, durante a repressão estalinista, Kochar e Mazmanyan foram acusados de sabotagem contra a União Soviética e deportados para Norilsk, cidade siberiana no Círculo Polar Ártico, onde permaneceram 15 anos num gulag. Os dois foram reabilitados após a morte de Estaline.

 

Em 1962, Kochar foi novamente contratado para concluir o trabalho que tinha iniciado 30 anos antes. No ano seguinte, ao lado da Casa dos Escritores, nasceu a Cantina, uma estrutura oval assente num pilar de betão, erguida numa colina íngreme e rochosa. A projeção em direção ao lago, o enquadramento paisagístico e a varanda panorâmica fizeram deste edifício de vanguarda o mais emblemático do modernismo soviético.

Fonte das fotografias: Projeto de Recuperação da Fundação Getty. Pode ser consultado aqui: https://www.getty.edu/foundation/pdfs/kim/sevan_writers_resort_armenia_cmp.pdf

Capa do livro: Soviet Modernism 1955-1991/Unknow History (Park Books e Centro de Arquitetura de Viena, 2012).

Miradouro de Sevan. Plataforma modernista soviética situada à entrada da cidade, 1978.

Mosteiro Sevanavank. Complexo monástico localizado na Península de Sevan (ilha até meados dos anos 50), composto por duas igrejas cruciformes semelhantes. Foi fundado em 874 e cessou a sua atividade em 1930, quando o último monge partiu.

Khachkares no pátio do mosteiro. Estelas ao ar livre esculpidas em pedra, decoradas com uma cruz no meio, acompanhada de motivos vegetativo-geométricos, esculturas de santos e animais. Embora possa assumir diversas finalidades, a mais comum é ser invocada como memorial.


Cantina e Casa dos Escritores em 2023.

Passaram 60 anos. Apesar do deficiente estado de conservação, a Cantina mantém o seu ar futurista!

Interior da cantina.

Em estado de contemplação.

Lago Sevan visto da varanda. Num país sem acesso ao mar, o maior lago do Cáucaso é considerado um tesouro nacional. Situa-se a 1900m de altitude.

Vista da Casa dos Escritores para a Cantina.

 

Nos dois edifícios estão expostas discretamente algumas fotografias que retratam a sua história. Aquele que foi outrora um retiro para escritores e artistas, que acolheu intelectuais como Ossip Mandelstam, Vassili Grossman, Jean-Paul Satre e Simone de Beauvoir (os dois últimos encontram-se ao centro, na foto inferior esquerda), é um hotel decrépito, que precisa de obras de reabilitação, para não se tornar mais um sonho futurista com final triste. 

Nadejda Mandelstam relata em “Contra Toda a Esperança” (Imprensa Universitária de Lisboa, 2023) que Sevan foi o local de redescoberta da voz poética do marido e de denúncia da ditadura estalinista. Em 1934, Ossip Mandelstam publicou um poema satírico de Estaline que o levou à prisão e, quatro anos mais tarde, à morte, num campo de trabalho próximo de Vladisvostok. A sua obra literária sobreviveu devido ao esforço de Nadejda, que decorou os seus poemas para entregá-los à posteridade. “Contra Toda a Esperança” é um retrato dos últimos 4 anos de vida de Ossip Mandelstam e uma descrição devastadora dos anos de terror estalinista. Hannah Arendt considerou este livro o documento do século contra as ditaduras. 

Pilar da Cantina.

O designer gráfico Nvard Yerkanian pinta edifícios soviéticos arménios ameaçados, para alertar em relação ao seu estado de degradação: https://www.archipanic.com/armenian-soviet-architecture-nvard-yerkanian/

Em memória de António Loja Neves (1953-2018), jornalista, escritor e cinéfilo, com quem tive o prazer de trabalhar e conviver no "Porto 2001" e que continuou a ensinar-me depois de ter partido.