Gori
seria uma cidade desconhecida para o mundo se não fosse a terra natal de
Estaline (nascido Ioseb Djugachvili, 1878-1953). Surpreendentemente, as
estátuas e o museu que homenageiam o filho da terra sobreviveram à
desestalinização de Khrushchev (pós-53), à independência do país (1991),
ao conflito russo-georgiano (2008) e, por enquanto, às discussões na sociedade
sobre o que fazer e como exibir este espólio.
O
edifício principal parece um palácio medieval, com torre, fachada e paredes
laterais decoradas com motivos eclesiásticos e aristocráticos. Num museu
dedicado ao culto do líder soviético não há foices, martelos nem estrelas. Quem
não souber quem foi o homem e o seu contexto pode ficar com a impressão que vai
entrar numa exuberante casa senhorial de um príncipe georgiano.
Na
entrada, debaixo de um vitral abobadado, aparece uma estátua de Estaline ao fundo
de umas escadas de mármore. Ao longo do museu, será tratado "quase" como
um santo.
No primeiro andar, recua-se até à estética e ao design soviéticos dos
anos 50, com passadeiras vermelhas sobre pisos parquet, vitrines assentes em
pedestais de madeira e lustres no teto que carregam de amarelo pálido a pouca
luz natural existente. A visita começa com a infância difícil e a vida de
seminarista, enfatiza o seu trabalho como poeta e revolucionário, e segue a sua
ascensão ao poder.
O visitante também pode observar vários objetos pessoais, o seu escritório no Kremlin (foto) e ficar maravilhado com a vasta
coleção de presentes kitsch oferecidos por diversos líderes estrangeiros, desde tamancos com o rosto dos comunistas holandeses, passando por uma pomba italiana "Estaline, o campeão da paz!" até às estéticas austeras norte-coreana, chinesa e albanesa.
A
exposição termina com a máscara mortuária de Estaline, exibida no centro de uma
sala escura, destinada a ser percorrida em silêncio respeitoso. Lembrei-me das
intrigas e do humor negro em “A Morte de Estaline” e do fabuloso documentário
“Funeral de Estado”.
Balanço final. O museu omite o terror dos anos 30, concentrando-se no espírito revolucionário e nas qualidades de liderança da personagem. É inquestionável que a Batalha de Estalinegrado foi o momento de mudança no curso da guerra, que criou a aura de vencedor que Estaline projetou para o Mundo. Contudo, há muito que ficou por contar e mostrar. Em primeiro lugar, não se pode esquecer que Estaline foi o responsável pela ocupação russa da Geórgia: foi ele quem, contra as ordens de Lenine, enviou tropas para esmagar a breve independência (1918-21) e conduziu a consequente repressão no país e no partido. E depois, há a desumanização do regime. Não há referência a fomes, deportações, purgas e gulags que levaram à morte de 20 a 25 milhões de pessoas. No "porão" do museu, há uma sala (aberta em 2010) que faz uma breve referência à tortura e às perseguições, numa tentativa falhada de aliviar o silêncio ensurdecedor das vítimas. Por todo o antigo Império foram sendo apagadas as imagens públicas do “Pai dos Povos”: derrubaram-se estátuas, Estalinegrado passou a Volgogrado, o seu corpo deixou a companhia de Lenine na Praça Vermelha, mas, em Gori, o “espírito” de Estaline continua vivo. Perante o culto hagiográfico, a distorção da verdade e o mau gosto resta a pergunta final: valerá a pena a visita? A resposta não podia ser mais clara: sim. O museu é um importante testemunho de uma época, enquanto exemplo da propaganda. É nessa qualidade que ele deve ser visto, enquadrado e preservado.
Leituras de verão pré-georgiano. Li “O Jovem Estaline”, de Simon Sebag Montefiori (2007), e “A Biblioteca de Estaline – um ditador e os seus livros”, de Geoffrey Roberts (2023). Duas ideias síntese extraídas de cada um. Além de ter tornado Estaline um ateu, o seminário ensinou-lhe as táticas da repressão, vigilância, espionagem, intromissão na vida privada e a violação de princípios. Político sanguinário e leitor voraz, Estaline tinha 25 mil livros na sua biblioteca. Conclusão: os seminários são locais perigosos e ler não faz bem a toda a gente!