domingo, 3 de setembro de 2023

Gori

 

Bilhete do Museu Estaline, em Gori. https://www.stalinmuseum.ge/

Gori seria uma cidade desconhecida para o mundo se não fosse a terra natal de Estaline (nascido Ioseb Djugachvili, 1878-1953). Surpreendentemente, as estátuas e o museu que homenageiam o filho da terra sobreviveram à desestalinização de Khrushchev (pós-53), à independência do país (1991), ao conflito russo-georgiano (2008) e, por enquanto, às discussões na sociedade sobre o que fazer e como exibir este espólio.

 

O edifício principal parece um palácio medieval, com torre, fachada e paredes laterais decoradas com motivos eclesiásticos e aristocráticos. Num museu dedicado ao culto do líder soviético não há foices, martelos nem estrelas. Quem não souber quem foi o homem e o seu contexto pode ficar com a impressão que vai entrar numa exuberante casa senhorial de um príncipe georgiano.

Gori é o único local da ex-URSS onde se podem ver estátuas de Estaline em público.

Na entrada, debaixo de um vitral abobadado, aparece uma estátua de Estaline ao fundo de umas escadas de mármore. Ao longo do museu, será tratado "quase" como um santo. 

No primeiro andar, recua-se até à estética e ao design soviéticos dos anos 50, com passadeiras vermelhas sobre pisos parquet, vitrines assentes em pedestais de madeira e lustres no teto que carregam de amarelo pálido a pouca luz natural existente. A visita começa com a infância difícil e a vida de seminarista, enfatiza o seu trabalho como poeta e revolucionário, e segue a sua ascensão ao poder.

A estátua do artista enquanto jovem.

Os sacrifícios da "Guerra Patriótica" e a vitória soviética sobre a Alemanha Nazi merecem grande destaque.

 Fotos de Estaline nas conferências de Yalta e Potsdam, com Churchill e Roosevelt. Cartaz de propaganda "A Mãe Pátria precisa de ti!"

O visitante também pode observar vários objetos pessoais, o seu escritório no Kremlin (foto) e ficar maravilhado com a vasta coleção de presentes kitsch oferecidos por diversos líderes estrangeiros, desde tamancos com o rosto dos comunistas holandeses, passando por uma pomba italiana "Estaline, o campeão da paz!" até às estéticas austeras norte-coreana, chinesa e albanesa.

Descendentes de Estaline.

A exposição termina com a máscara mortuária de Estaline, exibida no centro de uma sala escura, destinada a ser percorrida em silêncio respeitoso. Lembrei-me das intrigas e do humor negro em “A Morte de Estaline” e do fabuloso documentário “Funeral de Estado”.

Cartazes dos filmes. 

Estaline acariciado, beijado na mão e fotografado.

No exterior, em frente ao edifício principal, fica a casa onde nasceu o menino Ioseb, envolvida numa estrutura semelhante a um templo.

Ao lado, a carruagem blindada que levou Estaline a Yalta e Potsdam.

No interior da carruagem.

Loja de recordações.

Balanço final. O museu omite o terror dos anos 30, concentrando-se no espírito revolucionário e nas qualidades de liderança da personagem. É inquestionável que a Batalha de Estalinegrado foi o momento de mudança no curso da guerra, que criou a aura de vencedor que Estaline projetou para o Mundo. Contudo, há muito que ficou por contar e mostrar. Em primeiro lugar, não se pode esquecer que Estaline foi o responsável pela ocupação russa da Geórgia: foi ele quem, contra as ordens de Lenine, enviou tropas para esmagar a breve independência (1918-21) e conduziu a consequente repressão no país e no partido. E depois, há a desumanização do regime. Não há referência a fomes, deportações, purgas e gulags que levaram à morte de 20 a 25 milhões de pessoas. No "porão" do museu, há uma sala (aberta em 2010) que faz uma breve referência à tortura e às perseguições, numa tentativa falhada de aliviar o silêncio ensurdecedor das vítimas. Por todo o antigo Império foram sendo apagadas as imagens públicas do “Pai dos Povos”: derrubaram-se estátuas, Estalinegrado passou a Volgogrado, o seu corpo deixou a companhia de Lenine na Praça Vermelha, mas, em Gori, o “espírito” de Estaline continua vivo. Perante o culto hagiográfico, a distorção da verdade e o mau gosto resta a pergunta final: valerá a pena a visita? A resposta não podia ser mais clara: sim. O museu é um importante testemunho de uma época, enquanto exemplo da propaganda. É nessa qualidade que ele deve ser visto, enquadrado e preservado.

Leituras de verão pré-georgiano. Li “O Jovem Estaline”, de Simon Sebag Montefiori (2007), e “A Biblioteca de Estaline – um ditador e os seus livros”, de Geoffrey Roberts (2023). Duas ideias síntese extraídas de cada um. Além de ter tornado Estaline um ateu, o seminário ensinou-lhe as táticas da repressão, vigilância, espionagem, intromissão na vida privada e a violação de princípios. Político sanguinário e leitor voraz, Estaline tinha 25 mil livros na sua biblioteca. Conclusão: os seminários são locais perigosos e ler não faz bem a toda a gente!


Ainda em Gori há um pequeno museu que presta homenagem aos georgianos que morreram na 2.ª GM, no Afeganistão, no Iraque (em missões ao serviço da ONU) e nos conflitos internos na Abecásia e Ossétia do Sul.

Material bélico recolhido em Gori, em 2008. A cidade fica a menos de 10km da Ossétia do Sul e foi bombardeada pelos russos.

Rostos georgianos que fazem parte dos 25 milhões de mortes soviéticas durante a 2.ª GM.