domingo, 3 de setembro de 2023

De Tbilisi à adolescência

A vitória do Dínamo na Taça das Taças de 1981

Se eu perguntasse a um georgiano, com mais de cinquenta anos, “Onde é que tu estavas em 13 de maio de 1981?” a resposta mais provável que poderia escutar era “Em frente à televisão, a assistir ao jogo de uma vida”. Em Dusseldorf, na República Federal Alemã, disputava-se a final da Taça das Taças entre o Dínamo de Tbilisi, da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e o Carl Zeiss Jena, da República Democrática Alemã. No Rheinstadion estavam apenas 4.750 espetadores, a maioria locais. À época, era impossível aos adeptos das duas equipas deslocarem-se ao estrangeiro. Hoje, quando se veem as imagens do jogo parece uma daquelas partidas do tempo do confinamento, com o estádio quase vazio… Mas, isso não é o mais importante. A 4 minutos do fim, Vitali Daraselia fez o 2-1 para o Dínamo e essa noite ficaria para sempre na memória da Geórgia. Aos 10 anos, perdido na imensidão soviética, foi a primeira vez que ouvi falar de Tbilisi….

 Em 2015, os Arquivos Nacionais e a Federação de Futebol organizaram uma exposição dedicada à vitória do Dínamo de Tbilisi, para homenagear a mais talentosa geração de futebolistas do país. Estes jogadores nunca abandonaram a Geórgia e fizeram a sua carreira quase sempre no mesmo clube, o que acentua o cunho nacionalista e distancia-os da herança soviética. As fotos do percurso na prova, da final e do regresso a casa podem ser vistas aqui: https://archive.gov.ge/en/2011-2015-1/1981-tslis-13-maisi-tbilisis-dinamo-uefa-s-tasebis-mflobelta-tasis-mflobeli-1 Ao cruzar as imagens com pesquisas na net, constatei que alguns destes jogadores georgianos participaram, ao serviço da URSS, em algumas partidas memoráveis que assisti no início dos anos oitenta, nomeadamente, contra o Brasil, no Mundial de Espanha 1982, e no duplo confronto com Portugal, na qualificação para o Europeu de França 1984.

A seleção da URSS presente no Mundial de Espanha era composta por vários jogadores do Dínamo de Tbilisi, com destaque para o central/capitão Aleksandr Chivadze, o médio Vitali Daraselia e o avançado Ramaz Shengelia. Nesse tempo, não era relevante para o Ocidente o jogo de equilíbrios nos bastidores entre russos, ucranianos e georgianos na seleção e na equipa técnica, entre a disciplina tática eslava e a irreverência caucasiana. Nos anos oitenta, a geografia e a política eram simples: todos pertenciam à União Soviética. Antes da desintegração na década seguinte e da consequente separação da identidade futebolística, o que impressionava na televisão eram as letras “CCCP” estampadas no equipamento. Num tempo de inocência e de começo de interpretação do Mundo, aquela camisola não representava apenas um país. Ela simbolizava um ideal e um inimigo e, como haveria de saber mais tarde, um falhanço e o fim de uma época.


Moscovo, 27 de abril de 1983. Os capitães Humberto Coelho e Aleksandr Chivadze cumprimentam-se antes do jogo URSS-Portugal de qualificação para o Europeu de França 1984. Portugal perdeu 5-0 e ficaram para a história as declarações do guarda-redes Manuel Bento, que justificou a derrota pela “falta de leite e fruta” … No bastião comunista do Barreiro, onde morava, as suas palavras foram mal recebidas. Consta-se que foi colocado um fardo de palha à porta de casa, para que não lhe faltasse comida… Na última partida do grupo, em Lisboa, a 13 de novembro de 1983, Chivadze foi novamente capitão quando a URSS, que apenas precisava de um empate, perdeu por 1-0, com um penalti inexistente fabricado por Fernando Chalana e convertido por Rui Jordão. Nesse final de tarde, vi, pela primeira vez, Portugal apurar-se para uma grande competição.

À esquerda, o capitão Aleksandr Chivadze mostra a Taça das Taças aos adeptos no antigo Estádio Vladimir Lenin, hoje Arena Boris Paichadze. De salientar que, enquanto existiu a URSS, apesar de todo o seu potencial desportivo, apenas o seu congénere de Kiev alcançou o mesmo feito por duas vezes. Em poucas palavras: Ucrânia 2, Geórgia 1, Rússia 0. À direita, um selo da República da Abecásia (juntamente com a Ossétia do Sul fazem parte dos 20% do território da Geórgia ocupado por tropas pró-Rússia) recorda o médio Vitali Daraselia (nascido na região separatista e falecido no final de 1982, num acidente de automóvel), autor do golo da vitória na final e titular da URSS no Mundial de Espanha. Pequeno detalhe. Não passa despercebido que Daraselia é apresentado com a camisola da seleção e não do clube que o projetou. Pela via do antigo Império reafirma-se a fidelidade à Rússia.

 

Não estava previsto, mas proporcionou-se. Numa manhã de agosto de 2023, a lembrança da final e o conhecimento das principais figuras dessa equipa permitiram-me ultrapassar a recusa inicial e convenceram um dirigente do Dínamo a deixar-me entrar no estádio. O "não" indiferente transformou-se num olhar de espanto como se ele tivesse contactado com um extraterrestre. De onde é que tu vens? À resposta expetável juntou-se o passado, um outro país distante com mais de 40 anos, tão longe como os 5 mil quilómetros de casa. No final do nosso encontro, despedimo-nos no setor 4, dedicado à eternidade do capitão Chivadze e à vitória de 1981.